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Foto da capa do Jornal GEN, em que aparecem os primeiros Gen de Belém, no portão da sede do movimento. Em destaque: (clockwize) Flávio Nassar e Antônio Ernesto Teixeira. Fonte: «Jornal Gen - generazione nuova». Ano III, n°15 aprile 1969. Acervo: Flávio Nassar.
Jovens estudantes clamavam por renovação / Crédito: Reprodução. In: MOVIMENTO DE MAIO DE 1968: "É PROIBIDO PROIBIR"
significado e um propósito guiados e estimulados, unicamente, por valores cristãos: o de ir-se contracorrente do hedonismo, do consumismo, do individualismo e da luxúria, que caracterizavam as tendências do comportamento juvenil da época, oferecendo-se aos jovens, em contrapartida, o ideal evangélico do amor ao próximo e da abertura em favor da unidade entre os homens e os povos.
O Conjunto, desde a origem, foi evoluindo aos poucos. Antes de sua configuração mais definitiva – ocorrida a partir de 1969, quando o GEN SINCO foi criado –, existia apenas em formato embrionário, reunindo alguns adolescentes que haviam conhecido o Movimento dos Focolares desde a sua instalação definitiva em Belém, entre os anos de 1966 e 1967. Com um simples violão, no começo, e um coro pouco afinado de diminuto grupo de jovens participantes – mas imbuídos do carisma da unidade –, cantava-se, com frequência, em reuniões, encontros e eventos internos do próprio Movimento dos Focolares – a exemplo das Mariápolis [4]. Somente em seguida é que viriam a surgir as apresentações de palco (shows), que passariam a fazer parte da tradição do Grupo – inicialmente, em montagens bastante modestas e, posteriormente, mais elaboradas.
As missas de finais de semana, em particular, acompanhadas pelas canções do GEN SINCO, eram um atrativo e uma referência entre os jovens da cidade – além de um meio eficaz de apostolado (evangelização). Muitos adolescentes vieram a se tornar membros do Movimento GEN em decorrência da frequência a essas liturgias, já acompanhadas, com o passar do tempo, não mais por um simples violão (como no princípio), mas, também, por guitarra, contrabaixo e bateria – refletindo as transformações do estilo musical de época.
Ficaram, destarte, famosas, no início dos anos 1970, as assim denominadas missas GEN, dos finais das tardes de sábado – ponto de encontro da juventude belenense e acontecimento de repercussão no meio católico local. Num primeiro momento, as celebrações ocorriam na Igreja das Mercês (construção barroca do século XVII), no centro histórico, a convite de um padre Xaveriano (Luigi Prandini, ou Padre Luís, como era chamado), amigo do Movimento dos Focolares; depois, na Capela de N. Sa. de Lourdes, situada num bairro mais central (Nazaré), onde os Gen costumavam frequentar as missas diárias – o que levou ao estreitamento da amizade com os padres Jesuítas do lugar, em particular o Padre Luciano (Luciano Fozzer), incentivador e colaborador do Grupo. Dois templos católicos que viriam servir de espaços à apresentação de alguns dos mais memoráveis espetáculos músico-teatrais produzidos pelo Conjunto, ao longo de seu trajeto.
Ao lado das missas, o GEN SINCO, com seus acordes e canções, alimentava as reuniões rotineiras do Movimento GEN, normalmente realizadas nas vesperais dos sábados, abertas aos jovens interessados em conhecer a experiência do grupo e ter contato com a espiritualidade do Movimento. Tais reuniões costumavam ocorrer, primordialmente (até meados dos anos 1970), na antiga sede GEN – um barracão de madeira, em terreno murado, na Av. Gov. José Malcher, próximo à Capela de Lourdes, cedido pela família Naef/René Nassar (amiga do Movimento) –, transferindo-se, depois (após a devolução da sede), para o imenso e aprazível quintal bosqueado do Colégio Gentil Bittencourt – também no bairro de Nazaré (próximo à famosa Basílica de N. Sa. de Nazaré) –, em ambiente ao ar livre e sombreado por arvoredo, além de outros sítios que, a este, se seguiram – a exemplo de uma casa antiga na esquina da rua João Balbi, por detrás da Capela de Lourdes, temporariamente cedida pelos padres Jesuítas ao Movimento GEN, que, em troca, propôs-se a recuperá-la de seu estado de abandono, chegando a usá-la por um par de anos.
As Jornadas GEN, que se constituíam em grandes festivais anuais de música e encenações coreográficas, usualmente realizadas em manhãs ou tardes de finais de semana – em que participavam centenas de rapazes e moças, de todas as idades e origens sociais –, também faziam parte da agenda do GEN SINCO. Foram inúmeros eventos do tipo, em anos sucessivos, realizados ora em auditórios de colégios, ora em ginásios ou grandes salas, ocasiões em que, conjuntamente com a ala feminina do Movimento (e seu conjunto correspondente, As Centelhas), difundia-se, por meio de canções, encenações e experiências de vida, a espiritualidade que cimentava toda aquela vitalidade e entusiasmo que costumavam atrair e mobilizar o público jovem da cidade e cercanias.
GEN SINCO e AS CENTELHAS, em apresentação conjunta numa Mariápolis, no Seminário São Pio X, em Ananindeua.
Numa dessas memoráveis Jornadas, no ginásio do SESC, chegaram a comparecer mais de 1.500 jovens (provenientes de Belém e cidades vizinhas), fato que reverberou nos jornais e nos noticiários locais de televisão, despertando o interesse de inúmeros espectadores (sobretudo da faixa juvenil) e da Igreja local – que, depois, viria a convidar os Gen para integrar a Pastoral da Juventude, coordenada pela Diocese.
Em mais de três décadas, entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 2000 – com dois intervalos de descontinuidade (entre 1981 e 1984 e de 1985 até 1997) –, quatorze foram os espetáculos músico-teatrais apresentados pelo Conjunto (numa média de mais de um por ano, na fase "clássica" de sua existência, compreendida entre 1969 e 1981):
Show em Tempos de Trevas e de Luz (1969)
Jornal de Hoje (1970/1º semestre)
O Trem (1970/2º semestre)
Emanuel, Esperada Esperança (1971/1º semestre)
Eli, Eli, Lama Sabactani (1971/2º semestre e 1972)
Mostra 73 (1973/1º semestre)
O que fizeram do Natal (1973/2º semestre)
Auto das Duas Cidades (1974)
Montaria (1975 e 1976)
As Sete Cenas de Patmos (1977)
Tupambaé (1978 e 1979)
Sal da Terra (1980)
Rei Negado (1981 e 1984)
e
Sinal de Contradição (2000)
Inicialmente em pequenos auditórios, ou no próprio barracão da antiga sede GEN; assim como, depois, em igrejas (das Mercês e Capela de Lourdes), ginásios, colégios e, até, em exíguos proscênios de casas de cinema, as peças chegaram, a partir da montagem de Montaria, a ganhar o palco do Theatro da Paz (o principal da cidade) – assim como de outras grandes casas de espetáculos, durante as tournées que se seguiram –, reunindo públicos de todas as idades (centenas por apresentação), mas, sobretudo, os jovens.
Era costume, quando não na sede GEN ou naquela do Focolare, ou mesmo nas residências dos membros do Conjunto ou em salas cedidas por simpatizantes do Grupo – como no caso de uma, bastante ampla, na Faculdade de Ciências Agrárias, oferecida por um voluntário do Movimento (Carlos Alberto Moreira), que era Vice-Diretor da Instituição –, os ensaios coreográficos e dos arranjos musicais serem realizados nos próprios locais previstos para os espetáculos, utilizando-se as noites durante a semana e, mesmo, os sábados e domingos (se necessário) para o entrosamento do elenco (atores, cantores e instrumentistas), os ajustes das cenas e as definições cenográficas – conforme as características dos ambientes de apresentação.
Os espetáculos, que tinham por objetivo principal levar a mensagem evangélica e a espiritualidade do Movimento dos Focolares à juventude, costumavam ser apresentados tanto em Belém, quanto em cidades do interior do Pará e de fora do estado (sobretudo as capitais) – como ocorreu, mais de uma vez, nos vizinhos Amapá, Maranhão e Piauí. Certas peças chegaram a ser, inclusive, representadas em nível nacional, em circunstâncias específicas, como em São Paulo, durante a realização dos denominados Congressos GEN Nacionais – a partir de 1973.
O GEN SINCO surgiu num contexto particular de insatisfação e inquietação vivido pela juventude brasileira, em plena vigência do regime militar – fenômeno político latino-americano reflexo do açodamento da Guerra Fria –, o que proporcionou, aos seus membros, o enfrentamento de muitos obstáculos à publicização de suas canções e encenações, já que, a exemplo de outros grupos, era obrigado a apresentar, previamente, as pautas e textos de suas apresentações oficiais aos órgãos que controlavam a censura, naquela conjuntura. Tal condição, não obstante, era encarada por todos como um aprendizado e um desafio à práxis evangélica, à semelhança de outras gerações que, desde o início do Cristianismo, tiveram de enfrentar adversidades para exercer a profissão de fé – a começar pelos primeiros cristãos. Nessa perspectiva, tudo servia como “escola da vida”; motivação para uma maior conscientização do mundo real em seus obstáculos e tribulações, com reflexos positivos no amadurecimento pessoal de cada um e da coletividade no seu conjunto.
O principal mentor dessa experiência, autor e diretor (além de ator) dos primeiros espetáculos, foi um focolarino [5], poeta e professor de Literatura, Heleno Affonso de Oliveira Pinto, pernambucano de Santa Clara de Buíque (sertão nordestino), quem, então designado Assistente do Movimento GEN pelo Focolare de Belém, suscitou e alimentou o idealismo cristão naqueles jovens, formando-os culturalmente e motivando-os a viver e a construir uma nova sociedade, com base na fraternidade e no amor recíproco, inspirados no ideal evangélico e na espiritualidade do Movimento dos Focolares.
Muitos dos membros do GEN SINCO frequentaram a chamada “Escola GEN”, de inspiração do próprio Heleno, que reunia, uma vez por semana, na sede GEN de Belém, os adeptos mais empenhados da ala jovem do Movimento, com o propósito de estudar, coletivamente, textos de Literatura, de poesia, de Sociologia, de História, de Teologia, dentre outros – além das Sagradas Escrituras e dos escritos de Chiara Lubich (e demais expoentes do Movimento dos Focolares, como Pasquale Foresi, Igino Giordani, Piero Pasolini, Giuseppe Zanghì e Klaus Hemmerle) –, em leituras
Heleno de Oliveira entre os GEN, em momento de celebração e criação artística.
partilhadas e reflexões compartidas, sempre com o objetivo de se compreender melhor o mundo, o cosmos, a cultura brasileira, as tendências da contemporaneidade (como a secularização, a globalização, a divisão dos blocos políticos, etc.) e o papel do Evangelho e do “carisma da unidade” na desafiadora construção de uma nova humanidade, sempre com um olhar aberto e sensível à presença (ainda que indireta) dos valores evangélicos e das “manifestações do Verbo” – como dizia Heleno – nas várias expressões culturais – a exemplo da música popular brasileira e do cancioneiro popular internacional (costumeiramente abordados e fruídos em audições especiais voltadas ao conhecimento e escuta desses acervos).
Fazia-se comunhão de bens materiais, de vivências pessoais, das práticas evangélicas, das visões de mundo, dos talentos individuais, tudo radicado na fraternidade recíproca e no cultivo da esperança e da caridade como fundamentos da existência, sendo a experiência do Conjunto músico-teatral – e suas próprias canções autorais – tão somente uma expressão dessa vida comunitária, enraizada no Evangelho – e não um fim em si mesmo.
A primeira apresentação do Grupo, Show em Tempos de Trevas e de Luz [6] – título sugestivo e simbólico para o contexto –, de elaboração bastante simples, tinha como único recurso um violão e um conjunto de jovens inexperientes, melodicamente desafinados, mas plenamente motivados pelas mensagens que queriam repassar ao público, sintetizadas nas letras de seus textos e canções – como Mapa Mundi e Além do Sistema (de autoria própria) –, mas, sobretudo, nos testemunhos de vida – fator que sempre fazia suprir as lacunas do limitado desempenho “artístico”, não raramente surpreendendo o público.
A palavra “trevas”, do título do primeiro show, referia-se à escuridão de uma época de secularização, que anunciava a “morte de Deus” e a condenação do homem ao vazio existencial. A seu turno, o termo “luz” aludia à “Boa Nova”, à esperança evangélica, ao ideal do amor recepcionado por corações e mentes, aberto a todas as dores da humanidade e fonte de ressurreição. O espetáculo anunciava, assim, qual era o “Ideal” de Chiara Lubich, mulher que escolheu seguir a mensagem de Jesus Cristo e acolher, como ideal de vida, o amor ao próximo, justo em meio a um ambiente gretado por escombros e cinzas de bombas que, durante a Segunda Grande Guerra, haviam arrasado a cidade de Trento, ao norte da Itália, onde ela nascera e vivera a sua juventude.
A imagem da destruição (“Eram tempos de guerra e tudo desmoronava”) – tendo por cenário um Ocidente fraturado e dividido, em que se anunciava a “morte de Deus” – se apresentava aos olhos de Chiara como palco propício para o ressurgimento dos ideais mais radicais (à raiz) do Cristianismo, sobretudo à busca de um novo mundo, unido (depois de tantas ruínas e divisões) pela fraternidade universal e pelo ideal cristão da unidade. E assim nascia o Movimento dos Focolares, cujo lema – de inspiração evangélica –, não por acaso, desde a origem, foi: “Que todos sejam um” (Jo. 17, 21) – justo a grande súplica e oração sacerdotal de Jesus ao Pai, na cruz (e a sua máxima promessa profética).
As convicções mais altruístas, contidas no chamado de Chiara, atraíram jovens do mundo todo, criando uma rede internacional de cooperação e intercâmbio cultural e religioso, nas várias latitudes e longitudes do planeta. O pernambucano Heleno de Oliveira foi um deles. Tendo sido formado, no início dos anos 1960, no Centro do Movimento, na Itália (após ter conhecido, em Recife, os primeiros focolarinos italianos que chegaram ao Brasil, em novembro de 1959), Heleno – que veio a ser o primeiro focolarino brasileiro – houvera retornado à sua terra natal para instalar, em meados daquela década (mais precisamente em 1966), junto com outros companheiros brasileiros e italianos, uma sede da instituição no coração da Amazônia – a exemplo do que ocorria em outras regiões do Brasil, à época.
Em Belém do Pará, alguns dos primeiros jovens atraídos por esse mesmo Ideal, já sob a orientação de Heleno (então Assistente GEN), vieram a formar o nascente Grupo (ou Conjunto) GEN SINCO:
Antônio Ernesto Teixeira
Antônio Nassar (“Toninho”)
Antônio Quinto
Eduardo Nassar
Emanuel Matos (“Manu”)
Flávio Nassar
José Carlos Coqueiro,
Raimundo Dejard
Renato Athias
Roberto Cardoso (“Totoca”)
Romani Dahaás
Wilson Oliveira
– além de alguns outros, dentre os primeiros. Logo em seguida, numa segunda leva:
Alex Fiúza de Mello
Américo Secco (“Cri-Cri”)
Antônio Trindade (“Profeta”)
Demétrio Oliveira
Edison Farias
Eduardo Coutinho
Evandro Diniz
José Anastácio Lobo (“Lobão”)
José Paixão
Luiz Otávio Santos
Mário Feio
Ronaldo Cardoso (“Ting”)
Waldemar Oliveira
Nos anos subsequentes:
Abenair do Rego
Adalberto Matos
Antonio Messias
Alberto Teixeira
Aluísio Roberto Paiva (“Alui”)
Apolinário Alves (“Poló”)
Augusto César Almeida
Dinamir Viana
Domingos Sávio de Sousa Neto
Edilberto Barreiros (“Edil”)
Emanoel Leal de Lima (“Ceguinho”)
Francisco Henriques (“Chico”)
Guilherme Melo
Haroldo Dias
José Afonso Medeiros
José Tavares (“Maia”)
José Ishihara
Juracy Sousa
Júlio Sousa
Jorge Paulo Watrin
José Januário (“Juca”)
Jorge Faro
Luciano Sotelo
Márcio Pontes
Max Lima
Miguelangelo Martins
Milton Lobo
Nonato Cruz
Océlio Dias
Rilson Cruz
Capa do compacto em vinil do Conjunto GEN ROSSO, italiano, lançado em 1968.
então, com a inserção de expressões coreográficas às performances de cantos e recitações, numa opção por um estilo músico-teatral mais híbrido – que ganharia melhor conformação nos espetáculos seguintes.
O segundo semestre de 1971 e o ano de 1972 inaugurariam um novo ciclo de inflexão e de guinada de patamar para o Grupo, graças à produção (em duas versões subsequentes) da peça Eli, Eli, Lama Sabactani. Mais elaborado que as montagens anteriores, o novo show trouxe uma inovação, enquanto ambiente de apresentação: foi encenado, pela primeira vez, no interior de uma igreja, a de N. Sa. das Mercês, templo em estilo barroco, do século XVII (1640), localizado no centro histórico de Belém – onde habitualmente eram celebradas as missas GEN. Tal fato representou uma novidade para a cidade – e uma inovação, relativamente aos costumes locais –, vindo a ter – dada a originalidade da iniciativa – considerável repercussão no meio, de vez que, por tradição, os eventos produzidos nos interiores dos templos católicos estavam intimamente ligados, tão somente, às liturgias da Semana Santa e/ou do Natal.
A peça, inspirada no episódio da morte de Jesus na cruz e de seu grito de abandono espiritual (“Eli, Eli, lama sabactani”, em aramaico, ou “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?”), tinha todo o seu enredo sustentado por textos e canções próprios do Grupo, bem como da música popular brasileira (MPB) – a exemplo de Expresso 222, de Gilberto Gil; Rosa dos Ventos, de Chico Buarque de Holanda; e Fiz Uma Viagem, de Dorival Caymmi – além do repertório popular internacional (como as canções do grupo folclórico espanhol Aguaviva, dos poetas andaluzes) [9].
Cena do show Eli Eli Lama Sabactani, montado na Igreja Nossa Senhora das Mercês, em Belém do Pará. Clockwise: Raimundo Dejard, Emanuel Matos e José Carlos Coqueiro
O recurso à saga da morte e ressurreição de Cristo buscava espelhar e reverberar, no contexto do mundo hodierno, os dramas e desafios da civilização contemporânea; as chagas de sua cultura hedonista e segregacionista, na qualidade de reedição da tragédia e perplexidade da condição humana simbolizada na crucifixão do Cordeiro de Deus – transversal no tempo e no espaço.
O grupo seguiu, nesse show, uma sugestão de Chiara Lubich, que aconselhava aos membros do Movimento (incluídos os Gen) em identificar no dicionário todas as palavras de conotação negativa referentes ao ser humano, cujos verbetes representariam – segundo a sua ótica – as realidades dolorosas da condição de existência da espécie, consumadas no grito de Jesus na cruz: o “abandonado”, o “injustiçado”, o “expropriado”, o “explorado”, o “enganado”, o “enlouquecido”, o “dividido”, o “nada”, o “verme” (da terra), etc. Por meio de tais associações, pretendia-se induzir as pessoas a refletir sobre a vida, a morte, a cultura, as mentalidades, os comportamentos, as visões de mundo, as injustiças e o próprio sentido da história.
Da mesma maneira, por meio do apelo ao grito de Jesus na cruz (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”), mirava-se induzir os jovens a tomar consciência da realidade do país (de seus paradoxos e contradições), particularmente expressa na música popular brasileira e nos textos de alguns dos maiores poetas nacionais e latinos, ali reconhecendo a face dilacerada do Cristo nas diversas formas de “abandono” e de “opressão”, espelhadas nas condições de vida do próprio povo e dos indivíduos e segmentos sociais injustiçados.
Durante a apresentação, num determinado momento – e para a surpresa do público –, gritava-se a palavra “fome”, em todos os recantos da igreja, com sons que ecoavam por todo o templo. Denunciava-se, com brados e cartazes, as injustiças, a censura, a opressão, a desigualdade social, enfim, todas as iniquidades e aflições que ressoavam, em situações dolorosas, o calvário e a crucifixão do Cristo – que eram ressignificadas nas narrativas e cenas do espetáculo.
Diferentemente do Jesus Super Star, da Broadway – desfigurado e traficado pelo vazio oportunista da sociedade de consumo –, ou do Jesus Freak, das gerações pós 1968 –ensanguentado numa cruz –, o “Jesus Abandonado” do GEN SINCO – na linha de Chiara – era apresentado como a “chave” para se penetrar as dores e as chagas da humanidade, sempre na esperança da redenção pelo “sangue do Cordeiro derramado” (da ressureição pela oferenda do amor):
“Jesus Cristo onda hippie / Jesus Cristo superstar / Jesus Cristo Buñuel / Atacando sem cessar. / Jesus Cristo nas camisas / Promoção comercial. / E nas bocas sem perfume / Que arrotando podridão / E, mesmo dentro do pântano, / Querem brancura, amplidão / De Ti, Cordeiro sangrado / De Ti, operário esmagado / Pelos mil opositores / Que querem luzes, achados / Pelo prurido de ouvir / Eternamente quadrados / Incapazes de sentir. / Vem! / E o que importa o metal e a gozação? / Sepulcro caiados somos / Pedindo evacuação!/ Não por onda, nem por moda / O meu canto se faz prece. / Não espero o teu regresso / Pra poder te encontrar! / É tempo, Senhor, retorna! / Meu navio quer afundar!
(Texto de Heleno de Oliveira sobre Jesus Cristo, recitado no espetáculo)
Todo o espetáculo era ancorado, cenograficamente, na beleza interior, em estilo barroco, do templo religioso. Os nichos, púlpitos e esculturas tornavam-se parte natural do cenário, iluminados por spots de luz negra e estroboscópica – introduzidos no show –, o que permitia um forte contraste com os detalhes dourados dos relevos decorativos da bela igreja. Um enorme círculo branco (simbolizando uma hóstia), onde eram projetados slides e dizeres, pendia do arame tensionado no transepto da nave central da edificação (por sobre a arena principal onde transcorriam as cenas), permitindo ao público visualizar, com o pretendido destaque, imagens e mensagens prospectadas em momentos cruciais da peça.
José Carlos Coqueiro, um Gen negro, no ápice do show, fazia o papel de Jesus. A escolha de tal artifício, de forte significado simbólico, já demonstrava a tendência estética vanguardista que o Grupo iria perseguir ao longo de suas produções, cujas inovações imagéticas e semânticas – tais como “sinais de contradição” – proporcionavam, não
Interior da Igreja das Mertcês. Belém, Pará.
Falar sobre o nascimento do filho de Deus significava, outrossim, abordar, com o mesmo destaque, o ápice da trajetória de sua vida: sua morte e ressurreição. Tal qual em versões anteriores, o Grupo denunciava, mais uma vez, no palco – na perspectiva da reiteração do sofrimento do Cristo enquanto corpo místico dilatado na história –, a fome, a violência, o abismo entre a riqueza e a pobreza, ofuscados pela hipocrisia midiática e pelo falso espírito natalino – temática tradicional e recorrente nos enredos das peças, sempre reapresentada sob prismas e formatos distintos.
Interior da Capela de Nossa Senhora de Lourdes. Belém, Pará.
Foto: Alex Fiuza de Mello
A reprise da canção Mapa-Mundi – a primeira composta por Heleno de Oliveira (e que viria a ser gravada, mais tarde, pela banda internacional GEN ROSSO, na Itália) –, ao mesmo tempo que sintetizava a percepção da dura realidade da existência humana – estampada no “sangue de irmãos” –, aludia, em contrapartida, à esperança daqueles jovens no resgate de um mundo melhor, expressa na bela e límpida mensagem tecida pela letra da cantiga.
Recursos lúdicos, como a dança da ciranda (que inaugurava o espetáculo), envolvendo diretamente o público, criavam um ambiente interativo positivo entre atores e plateia. Canções populares sobre o Natal permeavam todo o espetáculo, assim como algumas do Conjunto Cântico Novo, dos Gen de Recife (região Nordeste do Brasil). A canção Minuit Chrétien, do cancioneiro popular francês do século XIX, com letra de autoria de Placide Cappeau [12], além de Abaluayê, do compositor paraense Waldemar Henrique (que fora gravada pela cantora Clementina de Jesus), completavam o repertório da trilha sonora da peça – que, assim, mesclava elementos da cultura africana, indígena e europeia, ajudando o público a compreender a essência da cultura brasileira em diálogo vivo e criativo com uma hermenêutica de orientação cristã.
Uma encenação inspirada no candomblé, ecoada dentro da Capela de Lourdes na forte voz de Heleno, constituiu-se num dos momentos mais expressivos e significativos da peça, espelhando estilo já convencional do Grupo, que costumava imbricar músicas religiosas (do repertório laico-popular) e as suas próprias composições numa mesma e única urdidura de script, recurso este que se apresentava, ao público, como uma novidade e, ao mesmo tempo – por sua heterodoxia –, um “sinal de contradição” – materializando o desígnio do Conjunto, prospectado por Chiara desde a sua origem.
Após essa apresentação, a montagem viria ainda a ser exibida na empresa Centrais Elétricas do Pará (CELPA), em uma festividade interna da companhia, cujo abono oferecido pela performance serviu para custear parte das despesas de viagem dos Gen a São Paulo, para mais um Congresso Nacional do Movimento.
O ano de 1974 foi aquele do espetáculo Auto das Duas Cidades – tendo por subtítulo Cidade Alta, Cidade Baixa. A ideia era ressoar, simbolicamente, o “grito cósmico” do Cristo nos recantos mais diversos das contraditórias cidades contemporâneas, apresentando os seus paradoxos, desigualdades e injustiças. À “cidade da abundância” (das festas, das iguarias e da opulência) era confrontada a “cidade da miséria” (da lama, da traça e da desgraça).
O Auto apresentou a crucificação de Jesus em meio às “duas cidades”: as que existem no mundo exterior, dividindo ricos e pobres, mas, também (e ao mesmo tempo), aquelas que habitam dentro de cada ser humano, tensionando seus valores, mentalidade e estilos de vida.
A “cidade alta” e a “cidade baixa” eram metaforicamente expressas (nas músicas, nos textos e nas encenações) por combinações binárias contraditórias: amor-ódio, unidade-separação, convergência-divergência, racionalidade-loucura, razão-poesia, companhia-solidão, diálogo-silêncio, inclusão-exclusão:
“Agora vocês estão vendo a cidade. Talvez uma cidade assim como Belém, que não se divide em cidade alta e cidade baixa [como Salvador, na Bahia], mas em cidade velha e cidade nova. Pela cidade velha passa gente; pela cidade nova, também. Mas o que é a cidade, senão gente?! E os seus muros, andaísmos, ruínas o que são? Reflexo do povo; estruturas para a gente; para a maré que passa pelas ruas molhadas. A cidade alta e a cidade baixa existem mesmo aqui! Não é preciso a geografia. Não é preciso ir a São Luís do Maranhão. Ela existe até no coração da gente; no seu e no meu coração”.
(Trecho de texto recitado no início do espetáculo)
Esta foi uma das fases mais ricas do Grupo, no que concerne a composições musicais de própria autoria – a maioria do repertório apresentado na montagem. Em acréscimo e à sua vez, as experimentações cênicas ganharam novos desdobramentos e lapidações. O vestuário e a indumentária dos integrantes da peça, afinados ao tema, figuravam, igualmente, a dicotomia e o contraste “alto” e “baixo”: manta branca e transparente, de cetim, no dorso, e calças de sarrapilha (pano rústico usado para sacos de estopa), nas pernas.
Novas canções, compostas especialmente para a ocasião, balizavam a principal trilha sonora do espetáculo. Surgia a dupla Heleno (letrista) e Edilberto (músico) – este, à época, recém integrado ao grupo (após passagem por renomadas bandas da cidade).
Recursos lúdicos, como a dança das Taieiras, emprestavam ao espetáculo um timbre de cultura popular (no caso, a nordestina), que se mesclava a encenações mais sóbrias, pautadas em mensagens do Evangelho.
Mais uma vez – reprisando o show anterior – a encenação foi levada no interior da Capela de N. Sa. de Lourdes (onde os Gen costumavam se encontrar para a missa diária), com o apoio e o incentivo de um padre jesuíta, amigo do Movimento e do GEN SINCO : o saudoso Pe. Luciano (Fozzer) – constituindo-se, o templo, num espaço mais simples e menos decorado que a tradicional e barroca Igreja das Mercês (onde ocorrera a apresentação da peça Eli, Eli, lama sabactani, havia dois anos).
Diante das inovações introduzidas, a necessidade de recursos tecnológicos alternativos e mais sofisticados se fazia premente. Os Gen que estudavam engenharia elétrica e eletrônica produziram, então, engenhocas utilizadas na iluminação, que depois foram levadas nas turnês do Grupo pelo norte do Brasil – o que veio a facilitar, desde então, a logística das apresentações realizadas fora de Belém.
A mensagem pretendida do espetáculo e os seus desafios de comunicação artística requeriam melhores condições técnicas e de logística. O trabalho de muitos daqueles “atores” e “autores”, transformados em “diretores”, “produtores”, “dançarinos” e “cantores” – todos amadores na performance –, era completado, além do mais, pelo empenho de cada um na venda dos ingressos, que era feita de casa em casa, de apartamento em apartamento, nas lojas e nas escolas, pelas ruas e prédios de Belém. Eram os próprios protagonistas do show que se responsabilizavam (com a ajuda de outros companheiros do Movimento) em atrair o público, aproveitando a ocasião das vendas dos bilhetes para realizar um trabalho de apostolado (evangelização), particularmente entre os jovens.
Tudo era rústico, analógico, artesanal: dos scripts do espetáculo (datilografados em máquina Olivetti) à confecção das indumentárias (costuradas à mão); dos apetrechos utilizados em cena (simples e sóbrios) aos ingressos dos shows (produzidos em clichê) – ao ponto de, certa vez, um erro originariamente desapercebido na confecção dos ingressos do show O Que Fizeram do Natal (impresso como O Que Fizeral do Natal) ter obrigado a corrigir, manualmente, com caneta, um a um, todos os quatrocentos bilhetes já arrematados, substituindo o (equivocado) “l” da terminação do verbo pelo (correto) “m” (com as consequentes gozações recíprocas entre os membros do Grupo).
Fato é que, ao fim e ao cabo, naquele turbilhão de diligências, havia bastante improviso, amadorismo e voluntarismo por parte dos membros da equipe; mas, ao mesmo tempo, muito idealismo, determinação e, sobretudo, uma incondicional dedicação à causa, traduzidos por uma extrema doação, de todos e de cada um, àquilo que era o Ideal comumente partilhado – combustível de toda a ação.
Com o Auto em cartaz, o Grupo programou – pela primeira vez em sua história – algumas apresentações fora do estado do Pará.
Macapá, no Amapá, foi a primeira cidade do trajeto, acessada, unicamente – dada a inexistência de estradas –, por via aérea e/ou marítima (dois dias de viagem pelas turbulentas baías do Marajó e de Macapá). Equipamentos e instrumentos mais bem confeccionados conferiam, agora, maior suporte às apresentações e melhores opções à performance do Grupo, facilitando as adaptações técnicas às condições de infraestrutura de cada localidade – quase sempre precárias.
A propósito das viagens – que viriam a ser rotina na vida do Conjunto a partir de então –, não faltavam aventuras e, mesmo, riscos (!) no cumprimento dos itinerários – a considerar as enormes distâncias e as peculiares dificuldades de deslocamento entre rios e florestas, próprias das singularidades e dimensões amazônicas.
Neste caso específico da apresentação do Auto na capital amapaense – separada de Belém pelas baías do Guajará, do Marajó e de Macapá e seu imenso arquipélago –, a parte dos integrantes do GEN SINCO que, naquela oportunidade (por motivo de trabalho ou de compromisso de estudos), teve de utilizar a via aérea como alternativa, viveu um experiência inesquecível.
A “carona aérea” – conseguida gratuitamente graças à amizade de uma integrante do Movimento com a direção da Aeronáutica (o que, “providencialmente”, poupava despesas!) – foi num pequeno e antigo bimotor à hélice, modelo C-47, da Força Aérea Brasileira (FAB), sem pressurização, o qual, antes de aterrissar em Macapá (destino do grupo), deveria realizar um voo até a cidade do Oiapoque, no extremo norte do país (fronteira com a Guiana Francesa), em vista de uma entrega de materiais explosivos, a serem usados em uma plataforma de exploração de petróleo.
Por ocasião da ida, após a decolagem, já tendo atravessado a baía do Guajará (que margeia Belém), por volta de 10 minutos de viagem o aparelho apresentou um problema em um dos motores, que estourou, começando a perder óleo. No mesmo instante, um sargento especialista em mecânica (de origem japonesa), que integrava a tripulação, veio solicitar ao grupo que segurasse com firmeza o material inflamável que se encontrava no meio do corredor da aeronave, entre os bancos laterais (onde todos se localizavam), afim de que não se deslocasse com os possíveis movimentos bruscos que poderiam vir a ocorrer, em razão do imprevisto.
Após uma avaliação do problema – realizada através de uma janela que dava acesso à parte exterior da aeronave –, o dito sargento, contrariando as normas e regulamentos de voos comerciais, não poupou os passageiros do assustador anúncio: mediante um gesto característico, com as mãos em direção à cabine do comandante, indicava que a situação era muito crítica, inclusive com a possibilidade de explosão.
A duras penas, graças à destreza do piloto, o avião, felizmente, conseguiu retornar ao aeroporto de origem, adotando um voo baixo e rente às águas da baía, com o intuito de evitar e/ou minimizar os danos de um possível (e até fatídico) acidente.
Chegando a Belém, o equipamento foi imediatamente trocado e logo retomada a viagem; por certo, não em função do interesse dos passageiros de ocasião – meros “caroneiros” –, conquanto da carga explosiva que precisava, a qualquer custo, estar na longínqua plataforma petrolífera naquele mesmo dia. Aos membros do Conjunto, assim, protagonistas passivos do incidente, restara apenas a opção de dominar o medo e o trauma e enfrentar, novamente, a aventura daquela jornada (que se reiniciava), pois havia um show programado a ser realizado e uma missão a ser cumprida naquela mesma noite, em atenção à comunidade de Macapá – experiência essa que, mais tarde, viria a ser relatada em Roma (IT), no centro mundial do Movimento GEN, a título de exemplo do que significava fazer apostolado (evangelização) numa região como a Amazônia.
Na capital do Amapá, passado o susto, a apresentação aconteceu num ginásio de esportes, sendo o trabalho bem recebido pela comunidade local do Movimento e seus convidados. Mas o que o público macapaense, presente ao show, gostou mesmo foi da riqueza dos efeitos especiais da montagem, particularmente quando executada a música portuguesa Cantiga da Boa Gente [13], com destaque para o trecho em que eram usados pequenos sinos, misturados ao som do violão, como fundo musical – uma curiosa novidade naquele meio.
No segundo semestre de 1975, ocorreria uma inesperada ruptura na trajetória do Grupo. Por decisão do centro mundial do Movimento dos Focolares, Heleno de Oliveira teve de transferir-se para o sul do país, com a missão de implantar um novo centro regional, em Porto Alegre (RS), restando o GEN SINCO, desde então, sem o seu grande mentor, incentivador e orientador artístico e espiritual. Deixara ele, porém, como último legado, roteiro, texto e composições (por completo) de um novo espetáculo, de nome Montaria (de sua própria escolha) – o primeiro na história do Conjunto que viria a ser dirigido e levado a público sem a sua presença.
O desafio, até ali inédito, era dar continuidade à tradição dos espetáculos sem a assistência de seu principal líder e incentivador. Foi assim que, com muita coragem e determinação, o GEN SINCO, após uma primeira apresentação da peça na Capela de Lourdes, no final daquele ano (ainda orientada por seu criador), aventurou-se a apresentar novamente a peça, em setembro de 1976, só que agora no palco do Theatro da Paz (a principal casa de espetáculos da cidade), salto nunca antes tentado ou projetado – já que temido pelo próprio Heleno, que tinha plena consciência das limitações do desempenho artístico do Grupo.
A cultura brasileira vivia um período de ebulição de novos talentos e estilos musicais. A estética teatral avançava. Novas exigências artísticas se impunham. Tal quadro, extremamente desafiador para o GEN SINCO, não o impediu, contudo, de persistir na façanha de encenar, justo ali, no Da Paz, a derradeira obra de seu originário e principal criador, doravante num patamar mais ousado de elaboração e performance, como exigiam as dimensões e rituais de um grande palco – o que foi devidamente consumado com sucesso.
Show Montaria. Clockwise: Nonato Cruz, Jorge Faro, Apolinário Alves, Francisco Henriques e Raimundo Dejard. Ao chão: Afonso Medeiros e Edison Farias. Foto: Arquivo Apolinário Alves.
Enquanto roupas e indumentárias da primeira resentação seriam mantidas no espetáculo do Theatro da Paz, o resto da produção, sobretudo os elementos da cenografia, tiveram de ser inteiramente reformulados, com acabamentos adaptados às dimensões de um grande palco e realce para o uso da tinta fluorescente nos vários elementos em cena, que se destacavam sob o efeito da projeção da luz negra. Dessa forma, figuras geométricas especialmente inspiradas na cerâmica marajoara e tapajônica, assim como os desenhos decorativos de azulejos portugueses sobre esteiras de palha Taboa, pareciam flutuar no tablado, em vários momentos do show, criando um clima típico de “ambiente florestal”, de exotismo e de mistério.
O figurino dos integrantes, mais uma vez, fora criação de Edison Farias, que desta vez contou com o auxílio de outro Gen, Demétrio Oliveira – igualmente um dos atores centrais das cenas. As camisetas do elenco, todas pintadas à mão, traziam imagens e símbolos ligados à cultura amazônica: penas, colares, galhos, folhas, etc. As calças, à sua vez, foram as mesmas do espetáculo anterior (Auto das Duas Cidades), reaproveitadas e adaptadas ao novo contexto.
Interior do Theatro da Paz.
Foto: Wagner Santana. Disponível in:https://agenciapara.com.br/noticia/17920/. Acessado em 24 de novembro de 2020, às 21:53.
Exemplares, em esquema gráfico, do figurino do show Montaria, desenhado e executado por Edison Farias.
A temática aludia aos elementos da visualidade amazônica, em que cada camiseta de ator expressava um motivo específico. Fotografia disponível in: <https://br.freepik.com/fotos-gratis/jovem-macho-dancando-com-pano-transparente_5217459.htm#page=1&query=corpo%20masculino%20dan%C3%A7ando&position=13>. Acessado em 06 de novembro de 2020, às 22:30. Interferência gráfica: E. Farias
Esquema gráfico do figurino do show As 7 cenas de Patmos, desenhado e executado por Edison Farias. Fitas largas e brancas de cetim foram cosidas sobre os corpos dos atores, em composição com malhas pretas. Fotografia disponível in: <https://br.freepik.com/fotos-gratis/jovem-macho-dancando-com-pano-transparente_5217459.htm#page=1&query=corpo%20masculino%20dan%C3%A7ando&position=13>. Acessado em 06 de novembro de 2020, às 22:43. Interferência gráfica digital: E. Farias
A narrativa das cenas, urdida por Alex e Raimundo, inspirava-se no numeral escatológico “7”, do evangelista João. Por este viés, as sete cenas – anunciadas, sequencialmente, por trombetas – exibiam algumas mazelas do mundo hodierno, retratadas em denúncias contundentes – como a exploração da Amazônia; a escravidão do negro; o subdesenvolvimento (Terceiro Mundo); o aborto; a guerra; a marginalização; o genocídio dos povos indígenas –, cujos depoimentos, personificados nas vítimas caracteristicamente tipificadas, remetiam, ao mesmo tempo, à ideia de “purificação” e de “salvação”, radicadas na esperança do advento da “justiça final”, segundo as promessas evangélicas:
- o Índio: “Fui Baíra; fui sem nome; mas à civilização não fui homem. Hoje, encontrei Tupã e a morada na floresta”.
- o Negro: “Eu trouxe as marcas do ferro nas minhas costas. Hoje, elas se transformaram no símbolo de libertação”.
- o Esfomeado e Ignorante: “A fome e a ignorância das quais chorei, lavaram-me. E hoje rio. E meu riso é cheio de consolo”.
- Aquele que não nasceu: “Não cheguei a ser homem, mas existi no pensamento de Deus. E pelo feto que fui, o Pai guardou-me um lugar à sua direita”.
- o Morto de Guerra: “Depois da guerra neutrônica, diluí-me em cinzas. E o vento carregou-me até o seio de Deus. E agora, novamente, vivo”.
- Aquele que não teve: “Não cheguei a nutrir-me nem das sobras das mesas, marginalizado que fui. Hoje como e bebo com fartura; mas meu vinho é vedado àqueles que m’o negaram”.
A cada recitação, o ator encarregado pelo texto colocava sobre o seu dorso uma veste branca, para significar a purificação do ser; a sua condição de sobrevivente da “grande tribulação”, alvejado e redimido pelo sangue do Cordeiro – pelo exemplo do Cristo que, por amor à humanidade, deu a própria vida para libertar as pessoas de seu egoísmo e de sua escravidão interior, indicando o caminho da libertação:
“O importante é ser. E ser Deus (por participação). Eis a nossa grande vocação! (...) O amor em nós está entre nós. Basta que saiamos do nosso egoísmo e descubramos no próximo o caminho mais direto para chegar à Vida. E o homem se torna...HOMEM!
(Trecho do texto de encerramento do espetáculo)
A estreia da peça se deu no Ginásio de Esportes do SESC, na Av. Visconde de Souza Franco, em Belém. Os problemas da acústica das arquibancadas (ao fundo do ginásio) e da arquitetura do ambiente (muito disperso) foram os principais desafios enfrentados naquela oportunidade, além da tarefa de se arrumar e distribuir centenas de cadeiras no piso da quadra, para completar os lugares disponibilizados ao público – cuja presença de 1.200 pessoas, numa única apresentação, representou o recorde em toda a história do Conjunto.
Perspectiva do Ginásio de Esportes do SESC onde estreou o show As 7 cenas de Patmos. Fotografia: A. F. de Mello
A estética da peça era baseada em estilo dark, bastante simples, porém perfeitamente afinado ao texto. Dessa feita, os únicos elementos utilizados na cenografia eram sete faixas negras que pendiam do alto, estiradas de forma progressiva, uma a uma, ao fundo do palco, à medida que as cenas transcorriam.
Alguns momentos se fizeram emblemáticos, como a cena do Aborto – que revelou a expressividade teatral de Afonso Medeiros –, em que foi utilizada a canção (de título homônimo) do compositor Titico [14], do Conjunto Gen Cântico Novo, de Recife, e recitado o poema Ser, de Carlos Drummond de Andrade:
“O filho que não fiz / Hoje seria homem. / Ele corre na brisa, / Sem carne, sem nome.”
Com idêntico impacto, seguiu-se a cena denominada A Nossa Vida é um Círculo, criada por Raimundo Dejard (texto) e Edison Farias (coreografia), que remetia à ideia das contradições cíclicas da vida; das idiossincrasias humanas, com suas ilusões e fraquezas, deformidades e mazelas, reproduzidas indefinidamente no tempo – e sempre atuais:
“A nossa vida é um círculo / Mas um círculo vicioso / Se eu pulo pra cá, o círculo vem / Se eu pulo pra lá, o círculo vai / Até quando cantaremos / as nossas incompetências?... / Nossas?!!! / O círculo das paixões / das ilusões / das emoções / O círculo da fome / da seca / da cheia / A nossa vida é um círculo / O círculo do dinheiro / do carreirismo / do diploma / O círculo da ignorância / e do adultério das ideias / e da consciência / Onde se vêm as pragas / apocalípticas arraigadas / circulando / circulando / circulando... / A nossa vida é um circo! / Onde os palhaços riem / pra não chorar!”
(Texto original recitado na cena)
Cena de A Nossa Vida é um Círculo, do show As 7 Cenas de Patmos. Clockwise: José Afonso Medeiros, Mário Feio e Jorge Faro. Arquivo: E. Farias
Canções do próprio Grupo – com destaque para Patmos e Prece a um Deus (parcerias de Alex Fiúza de Mello e Edilberto Barreiros) e a musicalização (por Edilberto) de estrofes selecionadas do poema O Navio Negreiro, de Castro Alves (Tragédia ao Luar) –, somadas às do cancioneiro popular brasileiro se revezavam no roteiro, conferindo a musicalidade e o ambiente sonoro compatíveis a cada etapa da apresentação.
A grande novidade do espetáculo, porém, foi a sua abertura. O corpo cênico entrava por detrás da arquibancada, em ambiente totalmente escuro, com tochas nas mãos, em meio ao público, ao som e ao ritmo marcado de Kyrie [15], até uni-las no centro do palco, numa só fogueira, simbolizando a consumação dos tempos, das eras, da história.
O efeito cênico, logo de saída, conquistou a plateia, que já apresentava certa expectativa com respeito ao novo trabalho do Grupo – àquela altura, já tradicional na cidade –, sobretudo após a abertura cenográfica do show Montaria, que havia causado, no ano anterior, forte e surpreendente impacto aos costumeiros frequentadores das montagens do GEN SINCO.
Todas as cenas se faziam marcantes, com suas temáticas bem definidas; anunciadas, uma a uma, por uma trombeta, após a qual se introduziam as coreografias, associadas a canções especialmente selecionadas como fundo musical das encenações e textos correspondentes.
A composição visual, juntamente com os arranjos instrumentais – criações de Edilberto, Francisco Henriques e José Tavares (“Maia”) – afinaram-se num clima de pungente sonoplastia e eloquente dramaticidade, que acompanhou, do início ao fim, todo o desenrolar da apresentação. O grupo dos Gen que cumpria a função de contra-regra (tornada imprescindível desde a sofisticação dos espetáculos) pouco a pouco foi se consolidando e garantindo, em consequência, que a empreitada coletiva do GEN SINCO alcançasse, também sob o aspecto dos recursos cênicos, grande sucesso – o que também veio a facilitar a programação de novas tournées.
Para a ida a São Luís (MA) e a Teresina (PI), no que concerne às apresentações – atuadas, respectivamente, nos teatros Arthur Azevedo e Quatro de Setembro (os principais dessas capitais) –, o Grupo contou com o apoio de um veículo cedido por um empresário suíço (Joseph Hürllimann), amigo do Movimento, que frequentava Belém, à época. Tratava-se de um caminhão de fabricação suíça que havia servido durante a Segunda Guerra Mundial e que, como tantos outros similares, passaram a ser distribuídos, gratuitamente, pelo denominado Projeto AMA (coordenado pelo empresário) a associações religiosas que atuavam na Amazônia (daí a sigla do Projeto) – como, de resto, por meio de iniciativas análogas, com outras denominações, em outras regiões do Terceiro Mundo.
Curiosamente, o Gen Abenair Pessoa do Rego – que mais tarde tornar-se-ia um focolarino e integraria a banda internacional GEN ROSSO, na Itália (justo na função de motorista e técnico de som e imagem) – viria a ser o motorista desse caminhão, tendo para tal realizado curso específico na oficina dos Irmãos Salesianos, com o propósito de aprender a manusear um veículo tão especial e diferente (para os padrões locais), já que apresentava direção à direita e embreagem acionada por tempo, sem o recurso do pedal.
Para essas viagens aos vizinhos estados do Nordeste – que incluiu no itinerário, ademais, uma apresentação na cidade de Caxias (MA) –, fez-se necessário o uso de três veículos: o caminhão citado; uma Kombi nova (comprada com os recursos do show), dirigida por Zamir Vidal de Negreiros (focolarino de Belém, então Assistente GEN); e um carro particular, cedido e conduzido por Sebastião Solino, voluntário do Movimento. Alguns membros do Grupo iam no caminhão, ao lado dos instrumentos, sob a alta temperatura do escaldante calor amazônico e nordestino, ao passo que a outra parte era distribuída nos demais veículos, revezando-se os viajantes a cada parada.
Caminhão similar ao da foto foi utilizado no transporte dos instrumentos e componentes do Grupo GEN SINCO em tournées.
O resultado de todo esse esforço foi que quase todo o elenco adoeceu. Atingidos por uma forte virose, os cantores do Grupo passaram os dias cuidando de suas cordas vocais, não obstante tendo sido mantido, a despeito de tudo, o causticante trabalho de montagem e desmontagem dos espetáculos, em cada localidade, pelos próprios (e enfermados) “artistas”.
Na estreia, em São Luís do Maranhão, por detrás do pano de boca do palco, escutava-se o burburinho da plateia à espera do início do espetáculo. Os 750 lugares do Teatro Arthur Azevedo estavam totalmente preenchidos, e ainda havia espectadores sentados pelos corredores laterais, que margeavam os camarotes – tal era a expectativa dos jovens da cidade ante a apresentação do GEN SINCO, já então conhecido naquelas paragens.
Cabe ainda registrar que na primeira apresentação de Patmos, em Belém (ginásio do SESC), estiveram pessoalmente presentes, na plateia, por feliz coincidência: Heleno de Oliveira (de passagem pela cidade), Emanuel Matos (ex-Gen integrante do Grupo, também de passagem), Enzo Morandi (“Volo”), à época dirigente responsável pelo Movimento dos Focolares no Brasil, e Corrado Martino, novo dirigente do Movimento em Belém (em substituição a Heleno), italiano recém chegado à capital paraense – um fato inédito e marcante, pois representou a única ocasião na história do Conjunto em que todos os principais dirigentes do Movimento dos Focolares que cruzaram, de alguma forma, com a sua trajetória estiveram reunidos, numa mesma sessão, para assisti-lo.
Em meados dos anos 1970, por fatores diversos, muitas eram as dificuldades enfrentadas pelos brasileiros de todas as localidades, credos e idades, mas sobretudo os jovens: sejam as de ordem material e financeira, sejam as de natureza política (em razão das imposições decorrentes do vigente regime de exceção). Muitos dos integrantes do Grupo, por já terem alcançado a maioridade, tiveram de buscar emprego remunerado para sobreviver, ou mesmo se engajar em movimentos de resistência popular contra o arbítrio, em favor da redemocratização do país – contexto que veio a dificultar a permanência, no Conjunto, de vários de seus membros.
Foi na moldura desse cenário, mais precisamente em 1976, que ocorreu um episódio memorável na trajetória do Grupo. Em decorrência da relação de estreita amizade que se estabelecera com os padres Jesuítas da Capela de Lourdes, em Belém (onde os Gen frequentavam a missa diária), o GEN SINCO foi convidado, no mês de outubro daquele ano, para tocar na missa de 7º dia de um padre da Congregação, João Bosco Penido Burnier, que havia sido assassinado em um conflito com a polícia, no Estado de Mato Grosso (região Centro-Oeste do país), em decorrência da luta pela posse de terras entre “grileiros” [16] e “posseiros” [17] – muito comum naquele contexto.
Embora fosse uma época particularmente difícil e delicada para tal participação, por contados costumeiros atos repressivos do regime político para com esse tipo de manifestação, por motivação fincada, unicamente, num sentimento de fraternidade devotado à pessoa do Padre Luciano (Fozzer) – amigo do Movimento GEN e que sempre houvera motivado o Conjunto a se apresentar na Capela de Lourdes –, o Grupo decidiu aceitar o convite, enfrentando todas as dificuldades e ameaças potenciais de conjuntura.
Na missa, concelebrada por dezenas de religiosos, particularmente durante a meditação, após a comunhão, o Conjunto entoou a canção O Sonho Impossível, da peça O Homem de La Mancha, baseada no personagem de Dom Quixote, criado pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Houve, então, grande comoção na igreja, testemunhada por todos os presentes, fato que foi largamente noticiado nos principais jornais da época.
Transcorridos dois meses da ocorrência, e ainda devido à repercussão do feito, houve outro chamamento similar, no mesmo espírito do anterior, desta vez como um ato de solidariedade a dois bispos de dioceses da região Norte, Dom Alano Pena, bispo auxiliar de Belém, e Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (município do estado de Mato Grosso), que haviam sido detidos pela Polícia em decorrência de sua luta em defesa de pequenos lavradores expulsos de suas terras por “grileiros” (tal como no primeiro caso). Os dois bispos – que viriam a estar presentes ao evento –, como haviam tomado conhecimento dos ecos positivos da missa antecedente, pediram para que o Conjunto cantasse exatamente as mesmas canções, as quais foram executadas, naquela oportunidade, também em clima de muita solidariedade e emoção.
Todos esses acontecimentos concorreram para a determinação coletiva do Grupo em resistir às dificuldades de conjuntura e não permitir, em razão dos obstáculos de momento, a interrupção prematura da trajetória do Conjunto, não obstante as evidentes adversidades de ocasião. Sabia-se, de plena consciência, que a arte, sobretudo naquele ambiente hostil, era o instrumento mais eficaz (e protegido) para o cumprimento da função de apostolado (evangelização), especialmente entre os jovens, principais vítimas do contexto.
Nesse ínterim, Emanuel Matos, um dos Gen fundadores do GEN SINCO, que passara uma temporada na Itália (1974-1975) e, em seguida, no Rio Grande do Sul (1976) e em São Paulo (1977), havia retornado a Belém – onde viria a constituir família e a radicar-se, em definitivo. Resolveu-se, então, sob a sua liderança – aproveitando-se de sua experiência acumulada (inclusive no exterior) –, reunir alguns membros remanescentes do antigo grupo, convidando-se novos Gen, recém chegados, para completar o elenco: Jorge Faro, Henrique Sousa, Océlio Dias, Guilherme Melo, Augusto Cesar e Aluízio Roberto Paiva foram alguns desses casos. Promovia-se, assim, uma retomada das atividades do Conjunto, que viria a ser materializada num novo espetáculo, também levado ao palco do Theatro da Paz, cujo título escolhido foi Tupambaé.
Tupambaé, apresentado em novembro de 1978, foi um espetáculo que buscou colocar em luz um dos grandes dilemas (ou enigmas) da existência humana: a memória como referência e base da felicidade; enquanto expressão de uma história que, com o passar do tempo, distancia-se de sua condição primitiva e originária, legando, porém, à posteridade a alegoria do pertencimento, da identidade e da esperança, unicamente, sob a efígie da “lembrança”, da “reminiscência” – em rasgos e contornos ressignificados.
Essa temática levou o Grupo a refletir sobre a contribuição do Cristianismo ao enfrentamento dessa dimensão contraditória da realidade existencial, própria da natureza e da sociabilidade humanas. Sob a ótica do carisma de Chiara Lubich, o enredo buscava remeter o sentido das contradições e paradoxos humanos à experiência vivenciada por Jesus em sua crucifixão e abandono, ali apresentada como “chave” e “caminho” para a verdadeira libertação espiritual da humanidade – dado o Cristo histórico ter vivido, na condição de homem, a mesma experiência de limitação e fracasso da espécie, embora sendo Deus.
Esta ideia foi usada, ao mesmo tempo, como mote e prisma para se rever e ressignificar – a exemplo do show Montaria – a sofrida história dos povos amazônicos – no Crucificado refletida –, agora hermeneuticamente tecida num plano teleológico capaz de projetar um novo espectro de esperança e de salvação a todo esse inconcluso e dramático percurso, em dimensão e perspectiva escatológica e redentora.
“Tupambaé” é uma palavra tupi-guarani que quer dizer “terra de Deus” (o lendário paraíso primitivo, de onde tudo descende). Usando-se como recurso a visão mitológica da criação do mundo e do homem, segundo os mitos amazônicos, e fazendo-se uso de poetas brasileiros e de músicas de compositores nacionais (na linha da tradição do GEN SINCO), buscou-se criar uma ambiência semiótica capaz de suscitar, juntamente com os textos de Chiara Lubich e do próprio Grupo, um momento de encontro estético com a dor e o sofrimento, em sua dimensão libertadora universal – expressa na figura de Jesus Crucificado e Abandonado (encenado de múltiplas formas, no palco).
Mais uma vez, o GEN SINCO se esmerava em levar à reflexão evangélica não apenas o seu público interno, de jovens e simpatizantes, quanto aquele externo ao Movimento (de todas as faixas etárias), que acolhiam, com entusiasmo, as mensagens das apresentações. O roteiro esculpido por Emanuel Matos, além do mais, trazia desafios de várias ordens e escalas para a coreografia e a cenografia, sendo um desses a abertura do espetáculo, que deveria representar a criação do mundo (o boom cósmico) do ponto de vista do mito da floresta de Mavutsinim (referida na lenda indígena):
“Numa noite qualquer / em tempo que ninguém se alembra / vagava pelo mundo / o hálito do Espírito. / Na terra não morava ninguém / só Mavutsinim (o primeiro homem). / Mavutsinim achou uma concha / que ele fez virar mulher / e casou com ela. / Quando nasceu o primeiro filho / Mavutsinim saiu pelo mundo. / Tupã, então, teve pena dele. / Conversou com Mavutsinim / e disse que Baé (que depois foi terra) / era sua e de seu povo / e, com ela, tudo o que nela continha. / Assim nasceu a floresta. / E tudo era muito bom!”
(Texto de abertura do espetáculo)
Sempre nos limites da economicidade, Edison Farias, com o apoio dos músicos do Conjunto – notadamente nos aspectos referentes aos efeitos sonoros –, tendo por ideia basilar a formação de um núcleo semi-esférico, postado no centro do palco, trabalhou a composição da cena de abertura utilizando, como recurso estético, o elemento de um simples guarda-chuva, de tecido em cor preta, cujo interior vinha costurado em panos brancos de morim, com desenhos pintados em formas de vegetais (flores, folhas, etc.), em tinta fluorescente.
Antes de as cortinas se abrirem, o corpo cênico se juntava, agachado, no centro do palco, em total escuridão, escondido por detrás de um círculo concentrado formado pelos guarda-chuvas pretos, abertos (ocultando os atores), sob a aparência de uma grande calota esférica, constituída por objetos discretamente reluzentes, a qual, somente após tênue luz lançada sobre o bloco de guarda-chuvas, ia progressivamente se revelando, em movimentos pulsantes, acompanhados em som semelhante ao de uma batida de coração, sempre crescente, enquanto os objetos, nesse ritmo descortinados (aparecimento da parte interna das abas dos guarda-chuvas, em panos brancos desenhados), eram manipulados com suavidade pelos atores (como se estivessem em câmara lenta), até atingirem o ápice da grande explosão (o boom originário da vida), eclodindo, finalmente, numa enorme flor multicolorida e flutuante no espaço (junção de todos os guarda-chuvas por seus avessos reluzentes), simbolizando a criação.
Abertura do show Tupambaé. Theatro da Paz. Belém (PA). Clockwise: Nonato Cruz, José Tavares, Edison Farias e Rilson Cruz.
Dessa feita, com poucos recursos, o Grupo conseguiu alcançar um excelente resultado coreográfico em mais essa apresentação, o que também o motivou a seguir, mais uma vez, em tournée pelas cidades da região onde existiam núcleos do Movimento, disseminando, por meio da arte, o Ideal da fraternidade e da esperança.
Algumas soluções cênicas introduzidas em Tupambaé foram reaproveitadas do show pregresso (As Sete Cenas de Patmos); enquanto que as grandes inovações do espetáculo foram as inclusões de composições autorais próprias em ritmo de boleros e frevos – inéditas até então –, além de textos expressivos, com imagens inspiradas em parábolas do Evangelho, como a das Figueiras (Figueiras Vivas, Figueiras Mortas), de Raimundo Dejard:
“Figueiras mortas! / Chegou o agricultor! / Onde estão os teus frutos? / Roubastes o nosso pedaço de terra! / Os amores não amam mais! / Os ardores não fervem mais! / Os ideais calaram-se / no mar da alienação. / Figueiras mortas! / Sem frutos! / Que fizestes do chão, do ar / Da vida que tivestes? / As placas auríferas encandearam tuas visões / E ascensão social, à custa de coraçõesexplorados! / Tardes mornas / Noites vazias / Ao redor do anjo exterminador / Monstro suave / TV S.A. / Informando as ações do teu dia! / Figueiras mortas! / Onde estão os teus talentos multiplicados? / Dá-me tudo de volta! / Outros morreram de fome / Esperando os teus frutos nascerem! / Figueiras vivas! / Mortas para o mundo / Vivas para a vida interior! / Vida mais verdadeira! / Que se imolaram como para-raios / A fim de reparar os delitos que nós cometemos! / Que produziram as flores mais belas de toda a Terra! / Que amaram até o fim! / Que morreram pela sua gente mais pobre / Mais miserável, mais oprimida! / Que perdoaram setenta vezes sete! / Que escolheram a melhor parte: Deus! / Figueiras vivas! / Vinde a mim /Todas cheias de luz! / Para apagarem-se em mim / E se reascenderem para sempre! / Figueiras mortas! / Que muitas vezes somos nós! Ainda há tempo: Renasçam! Renasçam!”
Esquema gráfico digital dos figurinos da cena Figueiras Vivas, Figueiras Mortas. Malha preta, vime, haste de fasquios e pano de musseline branco.
Reverberando Montaria, a “questão amazônica” também ganhou destaque no enredo do espetáculo, permeando algumas de suas passagens mais significativas e icônicas, com canções e textos eloquentes, de atualizado apelo e simbologia para a época:
“Amazônia minha / Amazônia nossa / Amazônia de todo mundo. / Teus homens de choros contidos / Nas florestas em cinzas / Esperando a esperança. / É hora da fuga / É hora do berro / É hora do fogo. / A bala abafa o silvo do pássaro / Nestas transas amazônicas / De noites sem lua. / É hora do suicídio / É hora do gemido. / Não! / É hora de lutar / Relutar / E mais lutar!”
A nova representação da crucificação do Cristo, ápice de toda a peça – tema permanente e transversal em todos os espetáculos do Grupo –, passara a ter Mário Feio no papel de Jesus. A concepção da cena exigia, originalmente, a semi-nudez do ator; opção, contudo, descartada a posteriori, sem prejuízo, porém, do efeito de expressividade desejado, alcançado por outros recursos – esses, também, de rara beleza.
Outra marca de Tupambaé foi que, pela primeira vez, o GEN SINCO executava, em cena, uma canção acompanhada, tão somente, por um piano de calda – naquela oportunidade disponível no palco do Theatro da Paz. Tal recurso só pôde ser acionado graças ao talento do novo tecladista do Conjunto, José Tavares (“Maia”), por ocasião da performance da canção No Silvo das Aves (cantada por Edison Farias) – a qual, justo por causa desse “detalhe” do piano, ficou emblematicamente grifada na história do Grupo.
Seguindo a linha das programações anteriores, após a estreia em Belém a peça foi reapresentada em outras cidades do interior do Pará e estados vizinhos (Maranhão e Piauí), mantendo-se, dessa feita, a tradição das excursões. No retorno da viagem à ribeirinha Abaetetuba (por fim revisitada desde a exibição do primeiro show do Conjunto, em 1969), e tendo-se conseguido um barco à motor para uso exclusivo do Grupo, alguns de seus integrantes, por divertimento, lançaram-se de calções de banho ao rio, deslizando em suas águas barrentas, puxados por salva-vidas de borracha amarrados por cordas à popa da embarcação, que navegava suavemente a favor da correnteza – num memorável episódio de descontração e entretenimento, dentre tantos outros que fizeram parte dos “enredos” das incontáveis aventuras!
Após Tupambaé, por razões várias (casamentos, compromissos profissionais, transferências para outras cidades, etc.), o GEN SINCO continuou a perder alguns de seus integrantes mais capacitados e experientes, cenário que conduziu os membros restantes, já então relativamente reduzidos, a enveredar por uma experiência diferente, dessa vez moldada, exclusivamente – dadas as circunstâncias –, pela apresentação de simples musicais, pautados em canções da MPB e de própria autoria – numa espécie de retorno ao estilo predominante do Grupo no prelúdio de sua trajetória. Nesse projeto, o trabalho coletivo de José Tavares, Francisco Henriques, Apolinário Alves e Nonato Cruz, dentre outros, foi decisivo na preparação de um novo espetáculo, que veio a se denominar Sal da Terra (1980). As músicas selecionadas – à parte sucessos pinçados da MPB – foram alguns dos principais hits de autoria do Conjunto, porém com arranjos novos e interpretação vocal mais apurada – representando a iniciativa, dessa feita, uma espécie de amostra seletiva do vasto cancioneiro do GEN SINCO.
O Grupo realizou, inicialmente, uma apresentação no auditório do majestoso Colégio Gentil Bittencourt [18], no célebre bairro de Nazaré (do Santuário de N. Sa. de Nazaré), cujo cenário – mais uma vez concebido por Edison Farias (com a assistência de Afonso Medeiros) – compreendia uma coroa de espinhos (construída com fasquios de restos de madeira doados por uma serraria), alusiva aos bairros periféricos de Belém, possibilitando um interessante efeito cênico, em forma de meia-lua, emoldurando toda a turma no palco. Seguiu-se uma segunda apresentação, agora num dos bairros mais pobres e violentos de Belém – o da Terra Firme –, experiência até então inédita na trajetória do Conjunto.
O convite veio por intermédio do pároco local, tendo sido cobrada, na oportunidade, bilheteria a preços módicos para ingresso ao espetáculo. Salão paroquial lotado, na sua maioria com plateia formada por jovens, as músicas – pelo clima compenetrado do ambiente – sinalizavam cair em solo fértil. O “sal” da mensagem, ao que tudo indicava, parecia dar outro sabor
Cartaz de divulgação do show Sal da Terra. Design gráfico e acervo: E. Farias.
àquelas vidas sofridas, conforme depoimentos colhidos após a apresentação – tanto que alguns jovens, presentes na ocasião, procuraram posteriormente o Movimento GEN, atraídos pela mensagem evangélica transmitida pelas canções.
O encerramento do show, conduzido no proscênio do tablado, teve a participação de todos os membros do Conjunto, postados em alinhamento horizontal perante o público, cantando a capella, como despedida, a canção de Inezita Barroso [19], Menino de Braçanã (composição de Luiz Vieira) – com acompanhamento espontâneo de parte da plateia.
Momento do show musical Sal da Terra, no auditório do Colégio Gentil Bittencourt. Clockwise: Apolinário Alves, Edison Farias, Alberto Teixeira e José Tavares ("Maia").
Por essa época, o grupo musical, já tendo alcançado significativa maturidade instrumental, resolveu enfrentar, pela primeira vez em sua história, um festival de canções, naquela oportunidade patrocinado pela tradicional Escola Salesiana do Trabalho (instituição dedicada à formação técnica e tecnológica), situada no bairro da Pedreira, em Belém. A canção Latino América (já antiga, mas inédita e desconhecida do grande público), numa nova roupagem, foi então apresentada nesse certame artístico, tendo o GEN SINCO conquistado todos os prêmios do festival: Melhor Composição, Melhor Arranjo e Melhor Intérprete. Este fato animou Corrado Martino – então responsável local do Movimento dos Focolares – a investir ainda mais no Conjunto, a começar pela compra de novos instrumentos musicais (àquela altura já necessitados) – além de outros apoios que vieram a se somar.
É também desse período a apresentação de curtas encenações coreográficas, com fundo musical, em torno de temas ou passagens do Evangelho, apropriadas para eventos, sobretudo de cunho religioso: jornadas de juventude, celebrações natalinas ou da Semana Santa, etc. As demandas e oportunidades, nesse sentido, eram inúmeras e variadas, a contar dos congressos e reuniões do próprio Movimento dos Focolares; de outros grupos de jovens; convites oriundos de escolas e faculdades – bem como a participação em encontros patrocinados pela Diocese de Belém. Era uma maneira alternativa de se fazer apostolado (evangelização) junto à juventude, utilizando-se do acervo acumulado das criações musicais e teatrais do Grupo, que estavam sempre à mão para as adaptações e acabamentos necessários a cada contexto, sem grandes esforços inventivos.
Uma montagem que ganhou destaque, dentre tantas, foi a encenação da Parábola do Filho Pródigo. Com texto que houvera sido elaborado por Heleno de Oliveira e música composta por Edilberto Barreiros, a peça foi apresentada inúmeras vezes, tanto na capital, quanto em cidades do interior paraense, com muito sucesso entre os jovens. Tratavam-se, tais apresentações, de pequenos espetáculos de ocasião (coreografias temáticas com fundo musical, de curta duração), cujo maior número de realizações ocorreu entre os anos de 1979 e 1981 – ainda que muitas montagens, como a do Filho Pródigo, já estivessem prontas desde o final de 1975 (quando Heleno ainda se encontrava presente em Belém). Esse tipo de iniciativa, aliás, foi a porta de entrada e a principal ferramenta utilizada pelo Grupo em suas aparições em eventos da Pastoral da Juventude, da Igreja local, coordenada pela Diocese de Belém.
Completou esse ciclo da trajetória do GEN SINCO a produção daquele que viria a ser o seu último show envolvendo uma performance esculpida por elementos teatrais: Rei Negado – levado ao palco do Auditório do Colégio Nazaré (bairro central de Belém), no mês de novembro de 1981.
Colégio Nazaré, Belém do Pará, em cujo auditório o GEN SINCO encenou o show Rei Negado pela primeira vez.
Uma das motivações à retomada da tradição dos espetáculos com expressão teatral se deveu ao sucesso da composição Vida de Herói, de Emanuel Matos (letra) e Edilberto Barreiros (música), que inspirou o Grupo, sob a liderança e coordenação do primeiro, ao enfrentamento de mais esse desafio – sendo que, dessa vez, com a renovação da quase totalidade dos integrantes do Conjunto.
O novo espetáculo tinha na música principal de sua trilha sonora, Rei Negado (também parceria de Emanuel e Edilberto ), o núcleo do esboço temático do enredo, cuja letra já antecipava, por si só, a tessitura de todo o script: a saga de um “rei” desconsiderado em sua própria terra (cidade), numa espécie de relouded da vida de Cristo; só que, desta feita, esgrimido na figura de um Jesus que se manifestava, em suas múltiplas “faces”, no cenário hodierno, sem a revisão do passado – narrado na perspectiva de um “eterno retorno” do grito da paixão do Cordeiro, sob formas diversas e atualizadas. O “Abandono” (do Cristo, do Homem) – mais uma vez tematizado pelo Grupo – se traduzia na ideia da negação do Amor, expresso nas várias fisionomias e formatos de colonização, de favelização, de delação, de exploração, de dilaceração e de violência – contra o trabalhador, a mulher e o menor de rua:
“Introduzo no palco / As chagas de um mundo agonizante. / Evoco a dor por uma questão de justiça!/ Meu poema pouco fala da flor / Porque sou homem do meu tempo! / Amo falar da cruz / Por ser ela o símbolo da vitória! / Não vos convido para a resignação / Porque vos estaria traindo! / Incluo, aqui, a palavra AMAR / Que indica AÇÃO! / Como medida, tomo o amor do Mestre / Que evita as evasões dos ismos e sofismas! / E que tem como objeto o mundo em gestação. / Razão pela qual meu canto é uma ave / Que foge para anunciar a esperança!”
(Texto de abertura do espetáculo)
O cenário emulava um muro com restos de cartazes e pixos, tendo por retaguarda uma estrutura de favela. Os recursos cênicos que se destacavam no show repousavam na figuração dos cantores, caracterizados em personagens de “malandros” que circulavam, no palco, em meio a “menores de rua” (crianças convidadas), a “meretrizes” (representadas por bonecas gigantes de papelão e tecido, aos moldes das de Olinda) e a um banner pintado no formato de uma cédula de dinheiro, no maior valor vigente à época:
“A morte tem nomes, decerto / É faca, fuzil, é fome / Que vem rondando por perto / Sem deixar a gente ser homem / (...) Outro nome é pivete / Que lembra trabalho precoce / Luta de canivete / E no bucho, um só corte / (...) Dizem que há liberdade, justiça e democracia. / Mas vejo nos ambientes / De alta categoria / Crianças lambendo os restos / Dos pratos da burguesia.”
(Trechos de texto recitado na cena sobre Os Meninos de Rua)
Cena sobre o menor abandonado, no show Rei Negado. Clockwise: Júlio Souza, Edson Moraes, José Afonso Medeiros, Emanuel, Flodoaldo, Dinamir Viana e Miguelangelo Martins. Deitados no chão, alguns meninos (GEN 3) convidados.
As músicas de destaque, emprestadas do cancioneiro popular latino-americano – e que se somavam às composições do próprio Grupo –, foram Canción con todos, de Armando Tejada Gomez [20], e Canción para un niño en la calle, do mesmo autor e Ángel Ritro – ambas colhidas da rica partitura da célebre cantora argentina Mercedes Sosa.
Em certo momento do script, a mensagem primordial da montagem ganhava toda a sua limpidez e eloquência:
“– Nada mais difícil do que fazer um espetáculo para os habitantes do Cone Sul!
– Aqui somos todos artistas. Todos de forma profissionalizada; alguns por vocação escolhida; outros por profissão imputada – numa luta sem trégua pela vida conquistada!
Cena sobre o Aborto, no show Rei Negado. Clockwise: Júlio Souza, Edson Moraes, José Afonso Medeiros, Emanuel, Flodoaldo, Dinamir Viana e Miguelangelo Martins. Deitados no chão, alguns meninos (GEN 3) convidados.
‘Passistas, palhaços, artistas, mulheres bem-quistas escondem o mal: apresentam um show ofertado pelos donos dos crimes que não se leem no jornal.’
– (...) Uma esperança, porém, que não esconde as amarguras de um mundo feito de contradições; esperança de alguém que reconhece que o ‘Cordeiro imolado’ não está morto: ressuscitou no terceiro dia e aguarda a nossa adesão para com o caminho percorrido por Ele. Tenham [pois] paciência conosco!”
O final da exibição reeditava a cosmovisão do drama latino-americano, em mais um texto de Emanuel Matos, tendo a canção Latino América, de sua autoria (então recém premiada em festival), como elemento de síntese de toda a mensagem, radicada no sentimento de renovada esperança e ancorada na regenerada disposição à luta, sem trégua, por justiça e libertação:
Rei Negado, tendo representado o encerramento de uma era na história do Movimento GEN, em Belém – demarcada, sobretudo, pela atuação do Conjunto GEN SINCO (sua melhor e mais icônica expressão) –, ao mesmo tempo resume, particularmente nos versos de sua canção-tema, o sentido espiritual mais profundo que permeou e plasmou, ao longo de todo o tempo, a experiência do Grupo; o leitmotiv por excelência que, desde os primórdios, sempre esteve presente, de forma transversal (e multíplice), em todos os espetáculos apresentados, inspirando-os e motivando-os: o mistério de Jesus Crucificado e Abandonado, referência central da espiritualidade de Chiara Lubich; “chave da unidade” – assim proclamada (e crida) – entre os homens e inspiração central de todos os enredos apresentados nos inúmeros shows do Conjunto – constituindo-se, ao fim e ao cabo, o distintivo maior [21] de sua memorável trajetória (o autêntico sinal de contradição).
Além dos espetáculos músico-teatrais – ou parcialmente em função deles –, o Grupo produziu, ao longo dos indeléveis anos de convivência, um cancioneiro rico e diversificado em ritmos e melodias, temas e enredos, de variados enfoques e abordagens, sempre permeados por uma visão cristã e universal do homem, do mundo e da cultura – característica que consagrou o seu estilo coletivo de produção.
Algumas dessas canções ganharam forte repercussão em muitos ambientes e eventos do Movimento dos Focolares e da Igreja, no Brasil e no exterior, envolvendo, inclusive, em alguns casos, traduções de suas letras em outras línguas, a exemplo de América, América, de Emanuel Matos e Edilberto Barreiros, que chegou a merecer versões em mais de doze idiomas e gravação, no Brasil, por outras bandas musicais do eixo artístico comum (como em São Paulo e no Paraná), desvinculado dos círculos religiosos – numa demonstração da universalidade de linguagem e conteúdo desse tipo de produção.
No que concerne a todo esse legado criativo – seu estilo e locução –, cabe registrar o protagonismo de três autores, em especial, responsáveis pela maioria do portfólio musical utilizado pelo GEN SINCO ao longo de seu percurso. Numa primeira fase (de 1973 a 1975) – descontado o período anterior, da origem do Grupo (de produção autoral rarefeita) –, predominou a dupla Heleno de Oliveira (letrista) / Edilberto Barreiros (músico); numa segunda etapa (de 1978 a 1981), a dupla Emanuel Matos (letrista) / Edilberto (músico). Emanuel, inclusive, por ocasião de sua passagem pela Itália (entre 1974 e 1975) – onde frequentou a Escola dos Focolarinos, em Loppiano, na Toscana [22] –, teve duas composições suas (em língua italiana) gravadas pelo conjunto musical mais célebre do Movimento dos Focolares, o GEN ROSSO: Il Cieco Nato e La Vita di Ogni Cosa (que veio, inclusive, a dar nome a um álbum da banda, editado em 1979).
Mapa Mundi (de Heleno de Oliveira e Antônio Quinto), Além do Sistema (de Heleno de Oliveira e Roberto Cardoso) e Gandhi (de Heleno de Oliveira, Emanuel Matos e Roberto Cardoso), num primeiro momento (1969/1970); e Latino América (de Emanuel Matos e Heleno de Oliveira) e Liberdade (de Emanuel Matos e Américo Secco), logo em seguida (1971/1972), podem ser consideradas as cinco canções mais marcantes e representativas da fase pioneira de criação, anterior a 1973. Nesta, a maioria das canções utilizadas nos shows do Grupo e nos encontros e reuniões do Movimento (como os Congressos GEN e as Mariápolis) ainda era importada da MPB, do cancioneiro folclórico e popular (nacional e internacional) e de outras bandas do Movimento dos Focolares, do Brasil e da Itália (sobretudo) – neste último caso, com tradução e versão para o português (muitas das quais da lavra do próprio Heleno).
Entre 1976 e 1977, ante a ausência de Heleno e Emanuel, Alex Fiúza de Mello, associado à musicalidade de Américo Secco e, sobretudo, de Edilberto Barreiros, despontou como o principal letrista das melodias do período, particularmente em função da montagem da peça As Sete Cenas de Patmos, que exigia, para as suas inéditas cenas, um novo repertório de canções, adaptado à temática do espetáculo.
Fato é que, não obstante o volume considerável de composições precipuamente direcionadas aos shows, em cada temporada, nem todas as canções concebidas por membros do GEN SINCO tinham por finalidade primordial o seu uso em espetáculos músico-teatrais. No seu conjunto, tratam-se de criações que também eram destinadas a animar os encontros do Movimento e festejos especiais, da mesma forma que cerimônias religiosas e celebrações litúrgicas, como o acompanhamento de missas (a exemplo das canções Magnificat, Santo e Senhor, Piedade!) – todos ensejos e demandas bastante frequentes e corriqueiros no cotidiano dos Gen de então.
Era comum, nesses eventos de rotina, seja em reuniões noturnas (mais internas ao grupo) ou de finais-de-semana (abertas aos jovens simpatizantes), seja em retiros espirituais (muito frequentes à época), ante a presença de um violão, que emergissem – como que num “laboratório reflexo" – experimentos e ensaios espontâneos de novas composições e arranjos, não raramente convertidos em “lançamentos” do Conjunto, em suas variadas formas de apresentação. A criação permanente, aliás, tanto poética quanto musical, constituía-se num hábito entre os Gen daquele período – sobretudo alimentado por aqueles que tinham talento para o métier (caso de Heleno, Emanuel e Edilberto) –, espelhando o clima de companheirismo e de fraternidade que movia, cada um, a partilhar ideias, intuições e descobertas.
Foi a partir da montagem de Auto das Duas Cidades, em 1974, que a criação das canções passou a ser predominantemente direcionada para as peças do Grupo, tornando-se, a partir de então, uma tônica do trabalho coletivo; e tendo por ápice, nesse diapasão, as apresentações dos shows Montaria (1976) e Tupambaé (1978) – em que, praticamente, a totalidade das trilhas musicais de ambos os espetáculos foi concebida sob esse condão.
Não foram poucas, destarte, as composições produzidas com esse propósito, envolvendo, não apenas, letras originais de autoria, sobretudo, de Heleno e Emanuel, quase sempre com músicas de Edilberto, assim como a elaboração, pelo último, de melodias para poemas destacados da literatura brasileira e portuguesa, utilizados, com frequência, nas apresentações do Grupo, a saber: I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias (da trilha musical de Montaria); O Navio Negreiro, de Castro Alves (da trilha de As Sete Cenas de Patmos); A Mão Enorme, de Jorge de Lima (da trilha de Tupambaé); e Sobolos Rios – estrofes selecionadas de uma das redondilhas [23] do poema Babel e Sião –, de autoria do célebre poeta português Luís de Camões (da trilha musical de Auto das Duas Cidades).
Outro tipo de realização, com o mesmo escopo, foi a musicalização de passagens (frases) do Evangelho, recurso utilizado em algumas exibições do Conjunto, como sucedeu, originariamente, na peça Auto das Duas Cidades, em que recitações evangélicas, constantes do script, eram entremeadas com trechos cantados, proporcionando, assim, um efeito de maior eloquência e plasticidade à cena.
A produção poética, seja dito, fazia parte do dia-a-dia de Heleno e de Emanuel – ambos acadêmicos e estudiosos da Literatura e das Ciências Sociais –, que costumavam “encomendar” a Edilberto (violonista experiente), em ocasiões e sob contingências distintas, o “casamento” de seus poemas com a inspiração musical do parceiro comum.
A todo momento, em qualquer lugar ou circunstância, podia ocorrer uma ideia, uma inspiração, um insight, ora sob a forma de poesia, ora de melodia (ou ambas ao mesmo tempo), imediatamente partilhadas e transformadas em belas canções. Tal foi o caso das composições Balada do Filho Pródigo e Elas (de subtítulo As Meretrizes) – tornadas célebres nas apresentações do GEN SINCO –, escritas por Heleno durante sua passagem por St. Gallen (cidade montanhesa, ao norte da Suíça), no inverno de 1975, e enviadas por carta a Edilberto, em Belém, que logo se incumbiria de musicá-las. Ou de Ser ou Não Ser, poema redigido também por Heleno (e igualmente musicado por Edilberto), após ter assistido ao filme O Discreto Charme da Burguesia, do famoso diretor e roteirista espanhol Luis Buñuel – que muito lhe impactou.
Reprodução do cartaz do filme O Discreto Charme da Buguesia, de Luis Buñuel, de 1972. Disponível in: https://www.amazon.com.mx/Discreto-Encanto-Burguesia-Fernando-Rey/dp/B003DD6UQE. Acessado em 08 de novembro de 2020, às 11:57.
Outro exemplo espontâneo desse rasgo criativo – dentre tantos e variados (cujas narrativas exigiriam um enorme volume de singulares e curiosas estórias) – foi a parição conjunta, por Emanuel e Edilberto, de Vida de Herói e América, América – esta, como já referido, de grande repercussão no âmbito do Movimento dos Focolares, em todo o mundo –, afluídas num único dia, de particular inspiração, por ocasião de um encontro de lazer, em um sítio de amigos, num final de semana.
América, América chegou a ser executada na cidade de Roma (Itália) pelos mais destacados conjuntos internacionais do Movimento dos Focolares – o GEN ROSSO e o GEN VERDE –, perante 14.000 pessoas, no grande ginásio Palaeur, por ocasião da realização do GEN FEST de 1985 – além de ter sido a canção de abertura da Jornada Mundial da Juventude [24] do ano de 2013, quando transcorrida no Rio de Janeiro, com a presença do Papa Francisco. Ademais, a canção já figurara como tema e título de disco especial, editado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), no ano de 1992, por
ocasião das homenagens aos 500 anos da Descoberta da América, em coletânea executada pelo Madrigal (coral) daquela instituição de ensino superior, cujo repertório, além de América, América (capa do disco), incluiu outras três composições do GEN SINCO: Tupã-Baé, Caravelas e Rancho Americano.
Afora as composições mais profusas e marcantes desses três autores – que constituem o principal acervo do período –, ainda houve aquelas (em menor número) nascidas de outros integrantes do Grupo – como as parcerias entre Américo e Alex (Canto de Paz e Magnificat) e, deste, com Edilberto (dentre as quais Onde Dois ou Mais, Patmos e Prece a um Deus) –, ocorrências que testemunham uma ambiência de pulsação e criatividade existente àquela altura, envolvendo a todos, indistintamente, e que desaguava no objetivo comum (e consciente) de se usar, nas mensagens das canções, uma linguagem mais versátil e universal (não estritamente “religiosa” ou "piegas") para se anunciar, da forma a mais ecumênica e polissêmica possível (inclusive para os ateus), a “Boa Nova” evangélica – em toda a sua dimensão laica, transcendental e intercultural.
Vivia-se, de fato, um ambiente marcado por uma experiência comunitária de verdadeira fraternidade, de compartilhamento de talentos e de genuína “unidade”– como se dizia –, da qual o GEN SINCO era apenas uma expressão – ainda que a mais reluzente. Era essa vida que cimentava o vínculo entre todos e atraía, no limite, os jovens, que assistiam às apresentações do Grupo, ao Movimento – e não os dotes “artísticos” (bastante limitados) dos integrantes do Conjunto.
BREVE HISTÓRIA DO GEN SINCO
Grupo músico-teatral GEN SINCO (Geração Nova Sinal de Contradição) surgiu no final dos anos 1960, em Belém do Pará [1], a exemplo de outros tantos, em outras partes do Brasil [2] e do mundo, no âmbito do Movimento dos Focolares – comunidade internacional, de inspiração cristã, fundada por Chiara Lubich, na Itália.[3]
Vivia-se um cenário de profundas transformações políticas e culturais na Europa e nos demais continentes, alimentadas por movimentos sociais (sobretudo de jovens) que eclodiam em todas as latitudes do planeta, expressos em contestações e reivindicações – como o célebre Maio de 1968, em Paris – em favor da paz e de novos direitos civis: liberdade sexual, de opinião e de expressão, igualdade de gêneros, de raças, etc. Foi esse contexto que animou a fundadora do Movimento dos Focolares a lançar à juventude da época o desafio da vida evangélica como “a verdadeira revolução (cultural)”. Sob o slogan “Jovens do mundo inteiro, uni-vos!”, Chiara motivou, em todos os lugares onde já existiam núcleos do Movimento, a estruturação de seu ramo juvenil, denominado de Movimento GEN (Geração Nova) – movido pelo ideal da unidade entre os povos e inspirado na promessa de Jesus “Que todos sejam um” (Jo 17, 21) –, transformando-se, então, os conjuntos artísticos (sobretudo musicais) em símbolos e expressões dessa iniciativa.
A designação “GEN SINCO” foi atribuição da própria Chiara, ao responder, em 1969, a um telegrama do Focolare de Belém que lhe informava da fundação do Movimento GEN na capital paraense e solicitava, na oportunidade, um nome para o seu conjunto musical. SINCO – abreviatura (em português) da expressão italiana Segnale di Contraddizione –, na acepção de Chiara, carregava um
Todos constituíram o GEN SINCO ao longo das primeiras quase duas décadas (contínuas) de sua existência; alguns de forma mais longeva, outros em situações mais pontuais e passageiras. Jovens de inúmeras origens, formações culturais, classes sociais e cor, cuja união e amizade, para além das diferenças, testemunhavam uma vida comunitária ancorada num ideal partilhado e alimentado por células de formação (as “Unidades GEN”), onde se lia e refletia, com regularidade, o Evangelho, textos de Chiara Lubich sobre o Novo Testamento (as “Palavras de Vida”), os pontos cardeais da espiritualidade do Movimento dos Focolares [7] – e se trocavam experiências de vida, cuja comunhão e sintonia sustentavam o GEN SINCO (expressão desse convívio fraterno), conferindo-lhe sentido e motivação.
Várias e diversas foram as peças músico-teatrais concebidas ao longo da trajetória do Grupo – e suas temáticas e enredos.
Em sequência à primeira montagem – Show em Tempos de Trevas e de Luz, de 1969 (exibida em Belém e na cidade de Abaetetuba) –, vieram as peças Jornal de Hoje, O Trem (ambas de 1970) e Emanuel, Esperada Esperança (de 1971), encenadas, as duas primeiras, no barracão da sede GEN (onde cabiam, no máximo, cem pessoas) e, a terceira, no auditório do Colégio Santa Rosa (bairro de Batista Campos) – sendo que Jornal de Hoje e O Trem, além de Belém, também foram apresentados nas cidades paraenses de Ananindeua (o primeiro) e de Castanhal, Capanema e Bragança.
Jornal de Hoje tematizava os problemas do Terceiro Mundo por meio de “notícias” recitadas na forma de textos, propugnando como caminho de libertação de toda sorte de dominação social a via da “revolução pacífica”, ao estilo de Gandhi, Luther King e Jesus Cristo (o Homem-Deus), com mensagens amparadas em canções selecionadas para expressar tal objetivo, sobretudo do repertório do Conjunto internacional GEN ROSSO [8] (do próprio Movimento dos Focolares) – como Tre uomini che non hanno avuto paura di morire, Ti Cerco e Ama e capirai (traduzidas para o português) –, além de algumas de autoria própria, em especial a dedicada a Gandhi (com letra de Heleno de Oliveira e Emanuel Matos e música de Roberto Cardoso (“Totoca”), cujo refrão enunciava: “Não-violência / Não é covardia não! / Se assim fosse / A Índia hoje / Estaria em outras mãos!”
O espetáculo O Trem, que se seguiu, propunha-se a representar a caminhada da humanidade em suas “estações” e desafios civilizatórios – sobretudo da modernidade industrializada –, projetada na figura metafórica de um “trem”, movido em direção a um destino, segundo uma perspectiva escatológica de redenção, inscrita na “Revelação” do Cristo.
À sua vez, Emanuel, Esperada Esperança, peça apresentada no primeiro semestre de 1971, abordava o anúncio da “Boa Nova” como projeto de ressignificação do sentido da existência humana, estampado no apelo natalino do (re)nascimento de Jesus, segundo um prisma e acepção transcendentais – o “Deus conosco”, presente no meio dos homens que se amam reciprocamente.
As três montagens seguidas serviram para estruturar um núcleo mais estável de membros do Conjunto (inclusive os instrumentistas) e definir a linha de atuação que seria perseguida desde
raramente, reação de estranhamento e surpresa no público presente, a exemplo dos mantos usados pelos atores na peça, ao molde de estolas brancas com detalhes pintados em tons fortes, que alardeavam, com os seus desenhos coloridos em contínuo movimento, os atônitos espectadores.
Eis que, num contexto de ateísmo crescente (secularização) – peculiar da época –, envolto numa cultura consumista, individualista e tecnologicamente opressora; e, ainda, sob o domínio de um regime político autoritário – que predominava em todo o continente latino-americano naquela conjuntura –, um grupo de rapazes tinha a coragem e a ousadia de subir num palco para falar de Deus e de amor ao próximo, denunciando, ao mesmo tempo, a injustiça, a opressão e a “despótica escravização da máquina”.
Por seu enredo e montagem, Eli, Eli gerou um certo desconforto e uma inquietante repercussão em alguns membros internos da própria comunidade da Obra de Maria, mas que foi sendo parcial e progressivamente assimilado à medida que, justo em razão do estilo do espetáculo, muitos jovens da plateia, ainda não participantes do Movimento, sentiam-se atraídos pela mensagem e por esta motivados a seguir o ideal de vida ali anunciado, juntando-se posteriormente ao grupo – dentre os quais alguns que viriam a ser futuros integrantes do próprio GEN SINCO, dando-lhe continuidade.
O estilo coreográfico arrojado, pautado em enredos (textos e canções) de cunho social, com ingredientes de denúncia e contestação (intrépidos para um contexto de repressão política), em linguagem de espectro mais elaborado e universalista – ainda que projetada por mensagens e imagens de conteúdos e significações de fundamento essencialmente cristão –, por representar um tipo de expressividade artística incomum no âmbito do Movimento dos Focolares (mesmo em nível internacional), chegou a provocar a vinda de representantes do Centro da Obra (na Itália) a Belém, sob a condução de um dos primeiros focolarinos (muito próximo a Chiara Lubich), Giulio Marchesi, com o propósito de observar e avaliar o modelo de atuação e expressão do Grupo.
O evento ocorreu em sessão especial (e restrita), realizada no auditório do Colégio Santa Rosa, no bairro de Batista Campos, obtendo o Conjunto, ao final de sua apresentação – pautada no show Mostra 73 –, a aprovação dos “examinadores”, com o reconhecimento de que se tratava de uma experiência singular, imbuída de uma visão cultural plasmada pela realidade brasileira (interpretada por Heleno de Oliveira), mas plenamente sintonizada com a espiritualidade do Movimento dos Focolares – da qual era expressão legítima e original, conforme parecer final.
Era o início de 1973, de novidades para a vida do Movimento GEN em todo o Brasil. O Grupo havia se lançado na promoção de apresentações e feiras de roupas usadas com o objetivo de angariar fundos para as despesas de viagem (de ônibus) e estadias em São Paulo, onde realizar-se-ia o primeiro Congresso GEN Nacional (de 2 a 7 de fevereiro), reunindo os Gen de todo o país. Assim nasceu o show Mostra 73, que foi encenado em janeiro, no barracão de madeira da antiga sede GEN, devidamente adaptado para o evento (inclusive com a construção de uma passarela no centro do salão) – retornando-se, assim, ao mesmo ambiente onde nasceram os primeiros espetáculos.
O Mostra 73, como expressa o próprio título, buscava ser uma pequena “amostra” da nova conjuntura brasileira, à época, em conformação, interpretada segundo uma ótica guiada pelo humanismo cristão e pela espiritualidade do Movimento dos Focolares, ao mesmo tempo ancorada numa visão crítica da realidade nacional e de decifração dos “sinais dos tempos”, desenhados naquele horizonte. Eram tempos de profundas mudanças culturais e políticas no país, a merecer uma reflexão seletiva e qualificada nos parâmetros de uma perspectiva cristã, dentre as quais se incluíam as lutas de resistência contra as injustiças e o arbítrio – potencializadas pela reverberação dos meios de comunicação de massa (em expansão naquele momento) –, ao lado da emergência do movimento da “Tropicália”, que viria a revolucionar, temática e ritmicamente, a música popular brasileira, com a mesclagem do rock'nroll e do estilo concretista [10] às expressões artísticas nativas.
E foram justamente as canções “tropicalistas” – com seus híbridos enredos nacionalistas e esteticamente inovadores – que constituíram o núcleo central da trilha sonora do espetáculo, a exemplo de Tropicália, de Caetano Veloso, e Brasil Pandeiro, de Assis Valente, repaginada pelos Novos Baianos – canção que abria o show, em clima de festa, envolvendo atores e instrumentistas, indistintamente vestidos de macacão de operário fabril.
Ainda no final do ano de 1973, foi montado um novo show, intitulado O que fizeram do Natal, inspirado no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade: [11]
“Natal. / O sino longe toca fino / Não tem neves, não tem gelos. / Natal. / Já nasceu o deus menino. / As beatas foram ver / Encontraram o coitadinho / (Natal) / Mais o boi mais o burrinho / E lá em cima / A estrelinha alumiando. / Natal. / As beatas ajoelharam / E adoraram o deus nuzinho. / Mas as filhas das beatas / E os namorados das filhas / Mas as filhas das beatas / Foram dançar black-bottom / Nos clubes sem presépio.”
Este novo espetáculo imprimia uma reflexão crítica sobre o cristianismo “folclórico” (fake), de finalidade comercial, expresso na “indústria do Natal”, chamando a atenção para o fenômeno do distanciamento das verdadeiras raízes natalinas, num contexto em que a virtude da caridade (do amor ao próximo) parecia ter se apagado, como valor cultural, do coração e da mente dos homens – restando o consumismo e a instrumentalização amoral da pessoa humana.
O natal comercial, retratado no show, era aquele que “abortava” o Cristo durante todos os meses do ano, na tentativa de “reinventá-lo”, oportunisticamente, apenas no mês de dezembro, exclusivamente para fins lucrativos. O questionamento dessa cultura consumista era expresso, na peça, por intermédio da crítica frontal à indústria cultural dominante, promotora de alienação e injustiça, ao passo que obstáculo à libertação total do homem, por afastá-lo da dimensão do amor fraternal e verdadeiro (como simbolizado por Cristo), que deveria ser a essência da comemoração da efeméride.
A exemplo de Eli,Eli, este novo show viria a repercutir no cenário cultural da cidade, particularmente no âmbito da Igreja e dos movimentos religiosos de então, seja pela linguagem de denúncia trabalhada durante o espetáculo, seja pelo uso (mais uma vez) de um espaço sagrado (a Capela de N. Sa. de Lourdes) para tal finalidade – incomum à época.
O show Montaria, assim, representou uma fase de transição na história do GEN SINCO, de vez que encenado, em sua reapresentação, já sem o apoio e a direção de seu fundador e tradicional mentor; uma circunstância que obrigou os membros do Conjunto, indistintamente, a um exercício de superação pessoal e coletiva ante tão significativa e inesperada perda, mas cuja experiência serviu ao crescimento de todos – e cujo reflexo foi a realização exitosa do ansiado (e temido) espetáculo.
O enredo da peça – destaque-se – introduzia, pela primeira vez na trajetória do Grupo, uma leitura da “questão amazônica”, com o resgate de seu passado de colonização e opressão, porém (re)interpretada sob uma ótica mais abrangente e universal das condições e contradições da epopeia humana, também espelhada na história singular da região – traduzida como espécie de “ópera avançada tupiniquim”.
O elemento simbólico principal do espetáculo era a figura de uma “montaria” (embarcação simples e primitiva, escavada em tronco de árvore), usual meio de transporte dos índios e caboclos ribeirinhos da região. A alegórica montaria conduzia, imageticamente, os atores e a plateia à memória da história e da cultura dos povos da floresta, transversal aos vários lugares e tempos amazônicos, em ritmo de calmaria, sem pressa (como as correntezas dos rios), em contraste com a forma contundente de abordagem dos diversos ganchos temáticos sugeridos pelo script, em suas metafóricas “paisagens” de percurso: igapós, igarapés, rios, vilas, malocas, aldeias e cidades amazônicas – ricas em estórias, paradoxos e incertezas.
A cenografia empregada – também projetada por Edison Farias, com a ajuda de Afonso Medeiros, recém integrado ao elenco (em substituição a Demétrio, que havia se transferido para o Rio de Janeiro) –, quase toda foi elaborada em material que permitia o fácil transporte e a montagem e desmontagem rápidas – já em vista das excursões previstas. Algumas das esteiras de miriti (madeira leve, de cor clara, nativa da região) eram cortadas entre os eixos de cerzidura, o que gerava um efeito de movimento em forma de cipós espalhados por sobre o palco. Uma pequena cabana, com um remo escorado à entrada, destacava-se à direita do espectador.
Uma surpresa para todos, no dia da estreia – fato que provocou súbito burburinho e aplausos espontâneos –, foi quando as cortinas do palco do teatro se abriram e toda a cenografia, com luzes direcionais, fluorescente e negra, criou um ambiente em estilo amazônico, com ruídos de selva produzidos por instrumentos artesanais de sopro, feitos de barro, recurso até então inédito em montagens do tipo.
Montaria inovou, igualmente, no sentido de ter sido o primeiro espetáculo em que praticamente todos os textos e canções utilizados ao longo da apresentação foram de autoria exclusiva do Grupo (particularmente de Heleno e Edilberto) – à exceção de alguns textos de Chiara Lubich sobre o “abandono” de Jesus (Filho do Homem), aproveitados em cena.
A seu turno, todos os arranjos musicais da trilha sonora foram refeitos para aquela ocasião, com melhorias significativas na execução do repertório e um maior refinamento do desempenho instrumental – como a introdução de sons e ruídos específicos, criados pelos novos integrantes da banda, Francisco Henriques (percussão) e José Tavares (teclado e sopro) –, como era exigido por cada cena da peça.
Devido ao momento político da época, os membros do grupo tinham que se identificar, previamente, à Polícia Federal, que fazia o papel de órgão de controle e censura. Não eram permitidas apresentações no Theatro da Paz (e espaços do gênero) sem a liberação da “carteira de artista”. E como se tratavam, os shows do GEN SINCO, de apresentações públicas, o script deveria ser analisado com antecedência pelos censores, para poder ser liberado (ou não) em seguida.
A contar que sempre havia palavras consideradas “suspeitas” nas letras das músicas e nos textos recitados – a exemplo de “sistema”, “contestação”, “alienação”, “dialética”, “opressão”, etc. –, fazia-se necessária uma especial inteligência para burlar o patrulhamento ideológico que cercava não somente o Grupo, mas toda a cultura brasileira de então, em todas as suas formas de expressão. Com frequência, alguns termos e expressões tinham que ser substituídos, enquanto outros retirados em definitivo, sem quaisquer explicações – e, não raramente, às vésperas da estreia.
Depois da apresentação no Theatro da Paz, lotado nas duas sessões, pela primeira vez o GEN SINCO entrou em tournée interestadual e percorreu, sequencialmente, as cidades de Castanhal (PA), Capanema (PA), São Luiz (MA), Teresina (PI) e, novamente, Macapá (AP) – revisitada após dois anos, desde a encenação do Auto das Duas Cidades. Na capital amapaense, a apresentação do show despertaria o interesse, em especial, de um jovem nativo, Miguelangelo Martins, artista local que fazia o crooner de um conjunto musical de Macapá. Tendo assistido ao espetáculo, este rapaz desejou conhecer mais em profundidade aquela proposta de vida, vindo a integrar, mais tarde – com os préstimos de seu talento –, o próprio GEN SINCO.
No ano de 1977, seguiu-se à peça Montaria uma nova, intitulada As Sete Cenas de Patmos. Seu significado maior, na história do GEN SINCO, deve-se ao fato de ter se constituído na primeira experiência de elaboração integral de um espetáculo (roteiro, textos, músicas, cenas e direção) sem a participação de Heleno – que ainda houvera sido o principal autor de Montaria. Tal ocorrência testemunhava a força de vontade e o esforço de superação do Grupo, que assumira, coletivamente, a responsabilidade em dar sequência à tradição do Conjunto nessa nova fase de seu transcurso – além de um certo amadurecimento humano e intelectual de seus membros, depois de tantos anos de formação, convivência e acúmulo de experiências.
Para compensar a ausência de Heleno de Oliveira, muitos foram os Gen que deram a sua contribuição à concepção e elaboração do roteiro e script do novo show – particularmente Alex Fiúza de Mello e Raimundo Dejard Vieira.
A produção da peça foi inspirada numa passagem bíblica do Apocalipse de S. João, do Novo Testamento, em que o autor, isolado na ilha de Patmos, houvera tido uma visão profética do futuro, retratada, metaforicamente, em sete cenas. Tal imagem serviu de alegoria para a concepção do enredo, com adaptação das cenas em tipos de tragédias humanas ainda presentes no cenário contemporâneo – de temperos (por assim dizer) tipicamente “apocalípticos”.
Com Patmos, visava-se a inovar em relação ao antigo modelo de apresentação dos espetáculos, introduzindo-se inéditos experimentos pictóricos e coreográficos, ajustados à singular sinopse da dramatização. Nessa mesma linha, figurinos novos foram desenhados por Edison Farias, com os atores envoltos numa malha preta, que possibilitava a expansão de seus movimentos em burilada expressão corporal. Expostos os torsos nus, largas tiras brancas desenhavam, como indumentária (por efeito ilusionista), os detalhes nos corpos dos atores, ainda mais realçados sob a projeção da luz negra – recurso sempre presente nas montagens.